AI: The Somnium Files - Nirvana Initiative - O poder obscuro da mente
Investigação criminal enredada em teorias da conspiração
Como género literário da ficção, o policial é uma arte narrativa na qual o autor como que baralha os dados lançados ao início, deixando em aberto o mistério ou o crime até aos derradeiros desenvolvimentos, quando é revelado o criminoso, normalmente uma personagem insuspeita. Dentro do que também é vulgarmente conhecido como aventura, que alguns anunciam como gráficas ou narrativas, o policial também pode assumir diferentes formas. Entre o crime, o fantasmagórico, o gótico ou mesmo o sobrenatural, desde os primórdios da indústria dos videojogos que o tema é explorado em vários moldes. Muitos designers e produtores desenvolveram ou começaram por trabalhar nestas narrativas de base point’n click.
Ainda recentemente tive a oportunidade de analisar The Silver Case, o remaster do jogo de 1999 desenvolvido pela produtora do japonês Goichi Suda, nos primeiros anos da sua carreira. Snacther, por exemplo, é uma aventura que serve de base aos jogos posteriores de Hideo Kojima. Mas se muitos produtores partiram destas aventuras para outras experiências, houve quem a elas tenha aportado numa fase posterior. É o que acontece com Kotaro Uchikoshi, escritor e produtor de séries como Infinity e Zero Escape e que agora nos traz AI: The Somnium Files - Nirvana Initiative, a sequela do jogo com o mesmo nome, AI: The Somnium Files, de 2019.
Infelizmente, não tive a oportunidade de jogar esse título, pelo que Nirvana Initiative marca o meu primeiro contacto com esta série, embora seja um jogador regular deste tipo de aventuras, cuja projecção a oriente chega ao ponto de influenciar muitos produtores, criadores e até séries, entre as quais Persona é uma espécie de farol. Acredito que qualquer entusiasta de muitos jogos da Atlus encontre neste tipo de aventuras algo mais de um certo saber fazer que os japoneses já provaram e continuam a demonstrar que são bons.
Duplo espaço temporal em Tóquio
Publicado e desenvolvido pela Spike Chunsoft, emerge mais uma vez o trabalho gráfico e a construção narrativa, pelas mãos, respectivamente, do artista de manga Yusuke Kosaki e Kotaro Uchikochi. A direcção coube a Akira Okada. Com uma estética e arte marcada por um traço muito consistente, assente no tipo manga, a qualidade da narrativa e dos diálogos começa por se destacar ao longo das primeiras horas de jogo. Vale a pena lembrar que o ritmo destas aventuras é algo vagaroso, ainda que preenchido por reviravoltas e desenvolvimentos que funcionam como capítulos ou subsecções da narrativa à medida que mergulhamos na história. No entanto, a narrativa está bem construída e oferece personagens consistentes, algumas cómicas e divertidas, entre outras mais obscuras e difusas, ao mesmo tempo que os pormenores de um crime peculiar nos levam a interrogar e querer saber mais sobre a sua concretização e os criminosos.
Com um segmento inicial entregue ao tutorial, que visa sobretudo a adaptação, o esquema não é difícil de assimilar por quem seja versado em jogos de point’n click, usando o analógico esquerdo (jogamos na Switch) para controlar o marcador que nos permite interagir com as personagens, as árvores de diálogo, as opções e os elementos do cenário. Depressa mergulhamos no âmbito do jogo. A respeito do sistema de interacção, é possível usar o ecrã táctil e aceder directamente à zona que queremos atingir com uma pressão, mas acho que nunca me senti confortável e acabei por recorrer ao marcador, que também não ficava mal contar com mais alguma afinação para melhor precisão. É nestas coisas que o rato pode fazer diferença. Por vezes, a cruz foge do alvo com uma pressão a mais no analógico. Nada de particularmente grave mas que acaba por ocorrer.
Passando ao tema, o jogador controla dois detectives da ABIS (Advanced Brain Investigation Squad) e as respectivas assistentes oculares, uma espécie de inteligência artificial à disposição e com a qual acabamos por interagir no âmbito das inquirições e idas aos locais dos crimes, mas cuja habilidade maior é mergulhar nas profundezas da memória dos suspeitos. A agente Mizuki e o agente Ruyki são os protagonistas mas demonstram igualmente a habilidade como agentes. Os eventos deste Nirvana Initiative decorrem em Tóquio, com um estranho crime marcado pelo curioso lapso temporal que existe entre a data da morte e o seu aparecimento, através de uma metade completamente fresca, sem sinais de putrefacção. A partir daqui Ryuki investiga o passado, enquanto Mizuki penetra no futuro. Sem conhecimento do jogo prévio, a opção inicial ao começar a jogar, de avançar sem ter jogado o anterior título, deixou-me mais tranquilo. Todavia, há uma conexão que não será despicienda para quem tenha jogado o anterior, nomeadamente os assassinatos em série do “Half Body”.
Mecânicas suspeitas
A repartição da investigação por duas personagens traz vantagens, até porque a habilidade de Tama, a companheira ocular de Ryuki, e Aiba, a assistente de Mizuki consiste em mergulhar na mente dos suspeitos. Trata-se de um “mergulho” que as conecta a um mundo polvilhado de memórias, secções com o tratamento “somnium”, que as deixa investigar sobre as vidas no passado. Já a recolha das provas e as inquirições, nas diferentes localidades de Tóquio são realizadas através de uma espécie de exame em raio-x e a algo sinistra visão termal. Aqui o sistema mais tradicional de “point'n click” é usual.
Uma vez reunidas as provas e relacionada a “documentação” da investigação, os dois detectives conjugam esforços numa recapitulação da matéria obtida, colocada sobre exame e através e um processo meticuloso dentro de uma linha temporal e de forma correcta. Também nesta fase o desafio é interessante, até porque o ambiente entre os dois detectives é construído numa relação salutar e algo de comédia imprevista como se estivessem numa espécie de concurso. Há muitos pormenores peculiares e humorísticos que se conjugam com as fases mais sórdidas da investigação.
Precisamente, quando descem ao “somnium” e penetram da mente dos suspeitos, vão de encontro ao que de mais grotesco, para não dizer escabroso, conseguem encontrar no jogo. Relembrar que é um jogo para uma audiência adulta, ainda que não contemple cenas explícitas, mas, por exemplo, uma cena envolve tocar no decote do peito de uma personagem feminina para surtir o avanço na narrativa. Além disso, há referências culturais e alguns temas alvo de teorias da conspiração. Não que sirvam de algum modo para ilibar os suspeitos mas adensar a trama. São pontos que penetram fundo e nos levam com interesse a acompanhar uma narrativa bem desenvolvida. Os puzzles dentro dos “somnium” têm as suas regras, com QTE’s e bastante exploração. A gravação a todo o instante facilita quando estamos numa fase mais demorada e o tempo para jogar acabou, pena que apenas nos seja dado um ficheiro para gravação manual.
Com uma boa narrativa, dualidade de realidades, as múltiplas interconexões e um tipo de exploração convincente, Nirvana Initiative é talvez a aventura mais proveitosa no género que joguei nos últimos tempos. E tanto Mizuki como Ryuki singram na polivalência e perspectiva dos acontecimentos. Com um bom trabalho de vozes em inglês, neste tipo de jogos acabo por jogar em japonês, até porque a acção decorre em Tóquio e as personagens são japonesas. Com uma boa arte manga e um trabalho gráfico luminoso, como que se forma uma moldura em torno de uma narrativa polvilhada de reviravoltas e um sentido de investigação acentuado, baseado em mecânicas ora tradicionais, ora invulgares. Com êxito cria essa sensação de mistério adensado.
Prós: | Contras: |
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