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Virtual Illusion - Jogar não é criar

Processos de dança e de leitura.

Na semana passada no blog Art Beats do NYTimes, Chris Suellentrop escreveu um texto relevante, “Considering Video Games as Ballet” [1], que nos fala do nascimento de diversas artes por comparação aos videojogos. A ideia era compreender as dificuldades que artes como o cinema ou o ballet tiveram no passado para se afirmar perante as comunidades das artes que as precederam. Nesse sentido o texto fala-nos dos problemas que o ballet teve em afirmar-se perante a música, mas vai longe demais quando tenta estabelecer um paralelo entre a performance do artista de ballet e a do jogador de videojogos. Porquê?

A primeira e imediata constatação que temos de fazer é que estamos a comparar um criador, o dançarino, com um receptor que é o jogador. Apesar de tudo Suellentrop parece ainda assim ter alguma razão, em parte porque o papel de um jogador é bem diferente do papel do espectador de ballet. Embora ambos requeiram altos níveis de performance cognitiva, só os videojogos requerem performance corporal. Neste sentido o texto de Suellentrop ganha um novo interesse, que é obrigar-nos a refletir sobre o que diferencia verdadeiramente estes papéis. Deste modo resolvi trabalhar uma analogia mais universal e fácil de compreender para todos, a leitura e a escrita.

Ler um texto requer por parte de uma pessoa uma série de mecanismos que precisam de ser treinados pela mímica e repetição de componentes abstractas - letras, pontuação, vocabulário, e gramática. A nossa visão passa pelas letras, e o nosso cérebro vai antecipando as palavras, que por sua vez une a outras palavras por meio de regras, formando frases que na nossa cabeça geram significados que arrumamos mentalmente. As frases vão-se se seguindo e o sentido vai-se reorganizando, ganhando maior amplitude e profundidade. No caso do filme, à visão é adicionada a audição, mas os sentidos já não se constroem a partir do abstracto mas antes a partir de uma relação mais direta com o real.

"Não se pede ao leitor que escolha os adjetivos e os verbos para descrever o ambiente e a ação. Jogar não é desenhar, assim como ler não é escrever."

Quando chega o videojogo precisamos de adicionar à visão e audição, a coordenação olho-mão que sustenta a interatividade sobre a imagem e som. A interatividade não é mais do que um conjunto de regras abstractas, muito semelhantes à gramática textual. Ou seja, o videojogo é uma forma de comunicação mais complexa, porque requer do jogador simultaneamente: a capacidade para compreender analogias visuais e sonoras; e ainda a capacidade para compreender regras abstractas, como no texto.

Vejamos o seguinte texto exemplo: “Ele caminhava por entre as sombras do bosque, e delicadamente desviava-se das folhas que caíam naquela tarde de Outono.”

A compreensão deste trecho de texto requer da parte do leitor a capacidade para trabalhar as palavras, adjetivos e verbos de modo a conseguir gerar representações mentais do espaço, do ambiente, do movimento do personagem e assim conseguir finalmente extrair o sentido do que é dito. Este texto colocado em imagem e som, requererá um esforço simplificado, porque os mecanismos necessários são os que se usam normalmente para compreender a realidade circundante. Já quando adicionamos a componente interativa de jogo à imagem e som, os mecanismos exigidos do jogador aproximam-se bastante do que é requerido ao leitor do texto. O jogador precisará de compreender os elementos que lhe permitem mover o personagem, assim como compreender as regras que lhe permitem desviar-se das folhas.

Tanto na leitura, como no jogo, as ações executadas são orientadas. Não se pede ao jogador que crie o ambiente ou o movimento, nem se pede que estabeleça as condições em que as folhas caem. Assim como não se pede ao leitor que escolha os adjetivos e os verbos para descrever o ambiente e a ação. Jogar não é desenhar, assim como ler não é escrever.

Deste modo, a ideia de que jogar videojogos pode ser igual a dançar ballet, não faz qualquer sentido. Jogar não é um ato de criação, mas um ato de compreensão. Jogamos para compreender o sentido daquilo que nos é dito, e não para criar ou expressar novas ideias.

"Claramente que podemos desenvolver jogos que coloquem o jogador no lugar de criador."

É necessário compreendermos isto para acabar com as constantes confusões entre os processos interativos e os processos criativos. Claramente que podemos desenvolver jogos que coloquem o jogador no lugar de criador, e temos exemplos disso como Spore Creature Creator (2008), LittleBigPlanet (2008) ou Minecraft (2011). Mas estamos a falar de um género reduzido do mundo dos videojogos. A generalidade dos jogadores não procura jogos para criar e expressar-se, mas antes para se divertir ou saber mais. Os jogadores não diferem dos leitores, assim como não diferem dos espectadores porque buscam o prazer no consumo das criações de outros. O seu prazer materializa-se na recompensa obtida por conseguir compreender o que os outros têm para dizer, seja através da leitura de uma frase escrita, ou do ultrapassar de um conjunto de plataformas.

[1] Chris Suellentrop, “Considering Video Games as Ballet”, Art Beats in NYTimes, 26.12.2012

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Sobre o Autor
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Nelson Zagalo

Contributor

Nelson Zagalo é professor de media interativa na Universidade do Minho e fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.

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