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Videojogos "estúpidos"

O jogo como obra de comunicação e de geração de prazer.

Esta semana o New York Times trouxe um artigo [1] sobre aquilo que eles consideram ser efeitos de alguns jogos: "Hyperaddictive, Time-Sucking, Relationship-Busting, Mind-Crushing Power and Allure". Na capa em papel, denominaram os jogos que produzem estes efeitos, de "silly" ou parvos, mas no texto interior, Sam Anderson leva o adjetivo para outro patamar e qualifica estes jogos como "estúpidos". Para tornar verdadeiramente explícito o conceito do artigo, Jon Huang diretor da equipa Multimédia do NYT trabalhou com a Rootof [2] no desenvolvimento de um pequeno jogo para a versão online do texto. Neste pequeno jogo conduzimos uma nave por cima da página web, e podemos atirar sobre todos os objetos dessa página destruindo-os, e eliminando-os da página. Ao fim de poucos segundos, ficamos ligados no jogo, e só paramos depois de ter destruído quase toda a página.

Dito isto, o artigo é duplamente interessante na discussão que suscita. Se por um lado chama de estúpidos a jogos como Angry Birds, Tetris, Bejeweled ou Super Mario, por outro usa esses mesmos jogos para elevar o potencial comunicativo do artigo em questão. Ou seja, o NYT faz uso das mecânicas de jogo, da linguagem nobre dos videojogos, para construir uma peça jornalística. O objetivo é ampliar a comunicação, inserindo no seu interior não apenas a descrição dos efeitos, mas a plenitude da experiência descrita. Nesse sentido podemos dizer que é um texto que marca o jornalismo, porque a simbiose entre o texto e o jogo é perfeita, e assim a relação pragmática entre o autor e o recetor funde-se completamente com o conteúdo, ou seja com aquilo que se pretende transmitir.

Destruir o website New York Times. Exemplo de jogo estúpido.

Quanto à questão da qualificação dos jogos, precisamos de nos interrogar sobre as razões da adjetivação. Percebemos pela ênfase dada pelo NYT, colocando o tema na capa e tendo em conta o tratamento gráfico, que não é feito com intenção de julgar negativamente os jogos. Existe aqui antes uma tentativa de consciencialização, de chamada à discussão, e é sobre isso que me debruço. Aliás o próprio Sam Anderson, para provavelmente evitar a reprovação por parte dos jogadores, justifica o adjetivo, dizendo que apenas em parte este descreve os jogos em questão, e que se o faz é mais como vingança por todas as horas que perdeu a jogá-los.

Mas então porque é que Sam Anderson considera os mini-jogos estúpidos? A principal razão dada é o consumo de tempo. Duma perspetiva ideológica da vida, em que se define o tempo como dinheiro, passar tempo numa atividade que não conduz a qualquer retorno financeiro, direta ou indiretamente, é simplesmente estúpido. Seja jogar Angry Birds, seja andar de comboio e não aproveitar o tempo para ler um livro, o jornal ou o e-mail, seja esperar por alguém num sítio sem wi-fi nem 3G, impossibilitado assim de "aproveitar" o tempo para ler e responder a e-mails. Seja qualquer atividade que não tenha uma relação externa visível e quantificável.

"Não posso mentalmente dizer a mim próprio, vou jogar mais 3 horas e acabar o jogo, porque o jogo não acaba."

Mas, na verdade os jogos até possuem uma questão visível e quantificável. O problema é que estes pequenos jogos foram criados para jogar em loop, são como as paisagens que vemos de uma janela de comboio, não têm fim. Ou seja não existe uma etiqueta para quantificar o valor da atividade, porque esta não termina. Não posso mentalmente dizer a mim próprio, vou jogar mais 3 horas e acabar o jogo, porque o jogo não acaba. Como não acaba, fico ali perdido no limbo da ausência de parâmetros quantificadores. Não posso usar o jogo como um valor social, ou seja dizer que consegui chegar ao fim do jogo, que investi X horas e que sei como acaba. Posso apenas dizer que também jogo, mas se todos jogam, não posso ganhar nada socialmente.

Então porque raio continuo a jogar? Essa é a questão mais interessante e importante deste artigo. Se jogo é por uma razão muito simples, por puro prazer. Este é o fundamento, prazer, nada mais. E o prazer é uma condição essencial à sobrevivência humana, não nos damos é conta disso, porque mais uma vez não é quantificável, medível, palpável. Mas só o prazer produz alegria, conduz ao bem-estar, estimula a auto-estima e por sua vez é capaz de produzir momentos de felicidade pura, que no fundo é aquilo que mantém a chama da vida acesa.

Angry Birds uma perda de tempo?

Este prazer de que falo pode ser estimulado de muitas formas, sendo a condição básica nos animais, a comida e o sexo. Mas este apenas dá prazer de tempos a tempos, e mais, existindo em abundância, ou seja em que a experiência se repete constantemente sempre que se necessita, deixa de ter efeitos. Por isso tivemos de elevar o patamar e passar da condição biológica à social, e aí começámos a retirar prazer das conquistas, do reconhecimento, do fazer bem ao próximo. Tudo isto funciona muito bem em comunidade, mas deixa para trás o indivíduo, a sua expressão individual e é daí que vai surgir a Arte. A arte surge com uma função bipartida, por um lado mantendo a sua componente social no sentido em que esta garante reconhecimento social ao criador. Por outro lado como atividade fruidora cultural, além do social, capaz de produzir prazer humano, na relação de comunicação com um artefacto.

E é desta relação que se constrói entre o humano e o objeto que surge o prazer, por via da experienciação de cores e traços de uma tela, das texturas e formas de uma escultura, ou dos acordes e melodias de uma música. Ou que pode passar pela antecipação de eventos e compreensão da narrativa na leitura/visionamento de um livro/filme. Ou claro jogar um jogo, aprendendo as regras e conseguindo dominar os elementos, obtendo prazer pela progressão continuada da minha mestria. Tudo isto são atividades que mantém a nossa mente engajada, com sentimentos de plenitude, estados de prazer, que como diz Epicuro se definem não apenas pela "ausência de dor no corpo" mas simultaneamente pela "ausência de agitação na alma".

E é para isto que serve um videojogo "estúpido", para saciar a mente, para criar janelas de escape das agitações do mundo e das dúvidas interiores, para criar estruturas de harmonia na nossa mente que nos conduzam ao bem-estar. Esta é a função primordial dos jogos e da arte. Mas como com todos os elementos que nos dão prazer na vida desde os biológicos aos cognitivos, estes precisam de ser consumidos de forma moderada e equilibrada, se não o prazer acabará por dar lugar ao aborrecimento e à frustração, ou seja à estupidez. Assim estes jogos podem ser muita coisa, mas não estúpidos, estúpidos podemos ser nós se não os soubermos aproveitar.

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