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Ultraviolência nos Videojogos

Emoções, mercado, e realismo gráfico.

A violência presente nos jogos de topo da E3 deste ano surpreendeu alguns visitantes da própria indústria. Phil Harrison [1] e Warren Spector [2] foram alguns dos que comentaram o facto de se terem sentido incomodados com o grau de violência apresentado. Jogos como The Last of Us, ZombieU, Hitman, ou Tomb Raider não têm qualquer pejo em apresentar em grandes planos no ecrã: cabeças rebentadas por caçadeiras, cabeças decapitadas, sangue que jorra pelo ar, ou sangue que cobre cara e corpo do personagem jogável. O que nos leva a questionar sobre o porquê de tanta prevalência da violência nos videjogos?

Não é difícil responder a esta questão. A representação da violência é capaz de estimular algumas das emoções humanas universais, indispensáveis à sobrevivência de qualquer um de nós. Emoções como o medo, raiva ou nojo são responsáveis por manter cada um de nós em alerta para os perigos externos. Da mesma forma que a representação do ato sexual ou partes erógenas, estimula em nós o desejo, e ativa a necessidade de acasalar para que a sobrevivência da espécie se mantenha. Ou seja, estamos a falar de mecanismos intrínsecos a qualquer organismo humano, que se encontram permanentemente em modo stand by.

Mecanismos que através da sua ativação ou saciação recompensam fortemente os indivíduos. Daí que o seu uso para estimulação das massas, não represente nenhuma novidade, basta recuar à Roma antiga e aos jogos de gladiadores. Analisando alguns dos momentos visuais e interativos que os videojogos hoje nos trazem, não diferem muito daquilo que era possível assistir num coliseu há 2000 anos atrás. Claro que aqui é ficção, mas as nossas emoções não fazem essa distinção, a compreensão entre real e ficcional acontece apenas num segundo momento, quando a emoção atinge a consciência.

Assim estas compensações não são apenas estimuladas pelos videojogos. Comparando com outros media já vimos estas mesmas representações visuais antes. No mundo da banda desenhada temos coleções de fanzines e webzines que se dedicam especificamente à temática. No mundo do cinema também, temos não só um género chamado de Terror, como temos mesmo um subgénero rotulado de Gore. Mas estes géneros de cinema ou coleções de BD estão longe de representar o mainstream de cada um desses media, representam nichos ou franjas culturais. Então porque é que nos videojogos, a violência não está também delimitada a uma área ou franja, mas antes ocupa o lugar central, estando presente nos principais lançamentos do ano?

Aqui a resposta é menos evidente e dispersa por vários factores. Em primeiro lugar acredito que estamos a assistir ao pico da aceitação da arte dos videojogos pela sociedade, o que tem permitido beneficiar de alguma condescendência e aceitação das suas particularidades. Esta condescendência não aparece apenas por se tratar deste media em particular, mas por a sociedade ter aprendido a lidar melhor com o aparecimento de cada novo meio de expressão. Tivemos sempre problemas com a violência no aparecimento de cada novo meio, desde o cinema à televisão, da rádio aos comics, todos se debateram com processos regulatórios, dos seus conteúdos, muito fortes impostos pelas comunidades. Neste sentido a indústria de jogos foi também mais inteligente, porque cedo percebeu que seria bom adoptar um código de avaliação dos públicos alvo por idades, permitindo aos pais saber mais facilmente o que estão a comprar aos seus filhos.

"Como é que se conseguem financiar jogos de topo que custam acima dos 30 ou 40 milhões de euros, quando estes mesmos jogos estão limitados a um público acima dos 18 anos."

A juntar a este processo existe ainda o facto dos videojogos terem demorado algum tempo a adquirir a capacidade para a representação visual realista. Um jogo em 8 bits, mesmo trabalhando temas como o atropelamento de pessoas, suscita menos reações da comunidade do que qualquer comic da era do crime e horror dos anos 1950. E neste sentido também se percebe que o que de facto está a acontecer agora, este aumento da violência gráfica, não é propriamente um aumento derivado da escolha de temáticas cada vez mais violentas, mas antes surge impulsionado pelo incremento da qualidade das tecnologias de representação fotorealista.

Mas subsiste ainda aqui uma questão, como é que se conseguem financiar jogos de topo que custam acima dos 30 ou 40 milhões de euros, quando estes mesmos jogos estão limitados a um público acima dos 18 anos. A indústria de Hollywood não tem qualquer problema em realizar cortes de cenas completas nos seus filmes, apenas para garantir que a apreciação de um filme baixe dos 18 para os 17 anos. Não só pela enorme faixa de adolescentes que poderão ir ao cinema e assim garantir maior receita, mas também porque assim evitam a criação de uma conotação negativa associada à existência de conteúdos menos próprios. Então que é que garante aos videojogos a imunidade a estas preocupações?

A resposta tem pelo menos duas leituras. Primeiro o facto de sabermos que a grande percentagem dos consumidores, dos "hard core gamers", estão na faixa etária dos 18 aos 34 anos. Segundo, porque muitos pais ainda não tomaram consciência do avanço gráfico ocorrido nos videojogos, do incremento dos efeitos de violência gráfica que têm vindo a acontecer. Como tal encaram os videojogos ainda como parte da cultura da brincadeira, ignorando assim as recomendações de idades presentes nas caixas dos jogos. Deste modo alarga-se substancialmente o número de jogadores e compradores, e torna-se possível manter a produção deste tipo de produtos de nicho.

Seja como for, os videojogos atingiram um ponto de não-retorno e daqui em diante terão de se preocupar cada vez mais com este assunto. Fazer de conta que não existe qualquer problema no momento, ou que é um assunto de menor importância poderá transformar-se dentro de muito pouco tempo num dos maiores problemas da indústria.

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Sobre o Autor
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Nelson Zagalo

Contributor

Nelson Zagalo é professor de media interativa na Universidade do Minho e fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.

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