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Polígonos no Horizonte

Demonstrações com cautela.

Quando se dá algo a provar ou experimentar há sempre uma conclusão imediata, seja ela de agrado e satisfação ou então de abandono imediato. Mesmo para os que ficam na incerteza a escolha há-de tombar para um lado. Muitos comerciantes sabem dessa estratégia e por isso facilitam o contacto que as pessoas podem ter com os seus produtos. Ainda que a tese das amostras e da possibilidade para experimentar se envolva numa lógica de risco, é tentador e aliciante deixar as pessoas com água na boca e com a definitiva vontade de comprar determinado produto. Nas feiras tradicionais, vindas da época medieval, a exposição dos produtos era de tal modo que os feirantes nem se importavam de perder alguns dos seus produtos só para convencerem potenciais compradores, atestando-lhes a qualidade do produto. E generalizou-se.

Vemos hoje nos stands de automóveis os “road shows”, no qual um potencial comprador conduz o carro para ficar convencido sobre as prestações do mesmo. Nas grandes superfícies de electrónica, música, multimédia e livros como a Fnac até se abrem espaços com sofás e mesas para um café, tudo para que os consumidores tenham , dentro do conforto possível, o tempo necessário para escolherem o que mais lhes aprouver. Quanto maior for o contacto mais depressa se pode vender. Lembro-me dos tempos idos, quando não havia demonstrações dos jogos, hoje tidos como retro ou “vintage”, em que a única forma para experimentar as novidades era através das lojas dedicadas.

Geralmente, debaixo de um televisor, estava a consola mais vendida a funcionar com um o jogo líder da tabela de vendas. Às vezes tinha vergonha de ir lá experimentar, era miúdo educado e não gostava de açambarcar coisas que não fossem da minha titularidade, mas com a banda dos amigos ainda deitei mão a alguns jogos como o Out Run para a Mega Drive e um outro jogo de Kung Fu, baseado no Bruce Lee. Tenho memória da vez em que escolhi o cartucho do Lion King para a Mega Drive. Tinha visto o filme no final do verão quando foi lançado em cassete VHS e depois de tentar o jogo, durante o primeiro nível, fiquei convertido. Não falhei. Nos tempos que se seguiram acabei o jogo algumas vezes e ainda hoje é uma das mais ilustres memórias. Para ficar a conhecer os jogos, o contacto era, naquela época, de grande importância já que eram poucas as formas de ficar a saber sobre os jogos. As revistas que informavam eram escassas pelo que a alternativa para descobrir os jogos passava pelas trocas de jogos temporárias com os camaradas de escola. E nesse caso a troca durava o tempo necessário para concluir a aventura. À pala disso perdi umas caixas transparentes dos cartuchos para o Game Boy. Dei bom remédio à perda, um Robocop a funcionar mal [só vai lá com insistência de sopros para o interior do cartucho] ficou do lado de cá.

Nos tempos seguintes a Saturn e Playstation ditaram a entrada em cena, de modo sustentado, do compact disc como formato de leitura primordial dos jogos e não levou muito tempo até surgirem demonstrações exclusivas cedidas “gratuitamente” pelas revistas. Para as editoras foi uma fase de grande negócio. Muitos entusiastas nem perdiam grande tempo com a leitura da revista. Eles queriam era a demonstração do Gran Turismo. Depois veio a demonstração do PES e assim sucessivamente. Para as revistas oficiais o CD ou DVD era parte essencial. Actualmente, com as máquinas ligadas à rede, o gasto da ligação de banda larga é suficiente para descarregar um balde cheio de megas, ainda quente, quando se desbrava o mapa inaugural da demonstração. Todas as semanas as novidades formam fila no Live Marketplace e Playstation Network e o Major Nelson é um dos promotores. São pequenos bombons ou também doces mal cozidos que chegam à praça de escrutínio todos os meses. Com maior ou menor antecedência, poucas são as produtoras que lançam demos depois de lançar o produto final, numa última tentativa para convencer os mais irredutíveis.

Ainda assim, alguns produtores mantêm a porta fechada e o máximo de segredo enquanto o produto final não chegar às bancas. Cliff Bleszinski, autor de Gears of War é um deles escorrendo a tese ao ponto de comparar o lançamento de uma demonstração com a ideia de se curtir com uma rapariga. Dá para ter sexo, admite ele. O termo custa caro e revela alguma crueldade, mas o produtor procurou justificar o comentário pela ideia do inevitável; eu já joguei e descobri como funciona. Posso pôr de lado. Já sei como é. E à custa desse contacto inaugural esbate-se a vontade de ter aquele contacto primitivo com a versão final posta a retalho que se prolonga até ao final da obra.

Por esta altura quase todo o mundo descarregou e já jogou a demonstração de Resident Evil 5. Os comentários severos propagam-se. “Mantém o mesmo esquema de RE4”, “não dá para andar e disparar” são as vozes mais recorrentes. Há também quem ressalve o possível mérito do jogo e sinta ânimo pelo estado da composição gráfica, laborada a talhe de alta definição, entre outros parâmetros notáveis como a integração do modo cooperativo para dois jogadores . Mas esses precisos termos de tom crítico poderiam valer para uma hipotética demonstração de RE4 aberta às diferentes regiões antes de Janeiro de 2005. Com uma demonstração exclusiva da revista Famitsu para o mercado nipónico da GameCube, só os importadores puderam desfrutar do primeiro nível e já naquele tempo não se lembraram de dizer; “bolas, não dá para andar e disparar ao mesmo tempo”, e “eish, os gráficos são mais ou menos ao nível de RE remake”.

Em grande parte o Cliff Bleszinski tem razão e com os dois jogos Gears of War, sempre flanqueou a colocação de pretensas conclusões antes de se perceber o jogo como um todo, completo e percebido desde o primeiro momento. Fechar um jogo a sete chaves até ao mítico dia pintado com um círculo é elevar a fasquia da curiosidade, pondo à prova o tempo de espera. As demonstrações querem-se com cautela, são traiçoeiras, distorcidas da percepção final e devem ser vistas como mero folheto informativo para contacto limitado, distantes de uma qualquer longa sessão posta em horário nobre. Já passaram quatro anos desde o lançamento de Resident Evil 4 e naquela altura, depois do lançamento, cada instante percorrido pelos passos iniciais de Leon Kennedy em direcção à misteriosa casa desolada era como um ter um livro por abrir, com páginas a cheirar a papel novo. Em permanente e total descoberta até zarpar, muitos dias depois, pelo nevoeiro.

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