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Paixão ou Dinheiro

Trabalho e lucro na indústria de videojogos.

Enquanto jogadores, e amantes de videojogos, queremos acreditar que quem cria videojogos, sejam indie ou AAA, o faz porque gosta tanto de videojogos como nós. No entanto quando começamos a analisar as questões por detrás do chamado "greenlight" (obtenção de luz verde do estúdio para avançar com a produção do jogo) as coisas mudam de figura. Quando lemos coisas como "Tomb Raider" (2013), que vendeu acima de 4 milhões de cópias, ser considerado um fracasso pela produtora, começamos a questionar-nos sobre toda esta indústria.

Há quase 10 anos atrás Erin Hoffman, a mulher de um trabalhador da Electronic Arts, escreveu um texto na net, que correu mundo e ficou conhecido como o manifesto "EA Spouse" [1]. Nesse texto eram relatadas as duras condições de trabalho que a EA infligia aos seus trabalhadores, tendo conduzido à instauração de vários processos em tribunal, e à mudança de práticas laborais por parte da EA. Tudo isto aconteceu em 2004, exactamente 10 anos depois da fundação da International Game Developers Association (IGDA) que tinha como missão: "Fazer avançar as carreiras e melhorar a vida dos criadores de jogos, ligando os membros com os seus pares, promovendo o desenvolvimento profissional, e advogando questões que afetam a comunidade de desenvolvedores."

Relatados estes dois momentos, não deixa de ser irónico que passados 20 anos, depois destes problemas terem sido já perfeitamente identificados, categorizados e trabalhados, tenhamos de constatar que tudo continua na mesma. O texto de Ian Williams "'You Can Sleep Here All Night': Video Games and Labor" [2], publicado ontem, dá bem conta de tudo isto. O título começa por tocar no número de horas que se trabalha na produção de videojogos, na ideia de que ter um saco-cama para dormir por debaixo da mesa onde se trabalha é "in". Quem o faz assume a sua paixão pelo trabalho que faz acima de qualquer outra coisa na vida, e assim em vez de fazer 40 horas (8h dia), passa a fazer 80 horas (16h dia), já que só pára para dormir. Aliás como trabalha por paixão, também não se importa de no final do mês levar para casa apenas o ordenado mínimo. Deve dar-se por satisfeito, faz aquilo que mais gosta na vida. Além de que já percebeu que aqueles que não trazem o saco cama, duram ali pouco mais de 3 ou 4 meses de estágio, são rapidamente trocados por outros ainda mais novos, prontos a nem sequer dormir se for necessário.

You Can Sleep Here All Night

Mas se assim é, como é que se explica que um jogo que vende 4 milhões de cópias a 50 euros média, cerca de 200 milhões, não é rentável? Estamos a falar de um valor superior a todo o investimento que Portugal, um país de 10 milhões de habitantes, vai gastar em Cultura [3] durante todo o ano de 2014. Ou seja todo o dinheiro que vamos investir na criação de cinema, teatro, dança, ópera, etc. etc.

"É muito dinheiro que entra de um lado, enquanto do outro temos muitas pessoas que deixam de ter vida para que tudo isto se torne possível."

Inicialmente todos nós acreditámos que o problema de tudo isto tinha surgido com os enormes custos de produção dos videojogos, impulsionados pelas necessidades gráficas desta geração de consolas que agora termina, e que a julgar pelas características da que agora chega, só se irá agravar. Aliás uma discussão que não é diferente daquela que caracteriza a indústria dos efeitos especiais no cinema [4]. Contudo, esta ideia não joga com as condições a que os trabalhadores destas indústrias andam a ser submetidos. Existe aqui algo pelo meio que nos escapa totalmente na equação. É muito dinheiro que entra de um lado, enquanto do outro temos muitas pessoas que deixam de ter vida para que tudo isto se torne possível. A culpa é nossa, os jogadores, que não queremos pagar o verdadeiro custo destas obras?!

Para percebermos isto, temos de voltar ao momento do "greenlight". O que é que acontece aí? Quem é que dá a luz verde? É o designer, o criativo que teve uma ideia brilhante, para uma nova IP com um conjunto de novas mecânicas nunca antes imaginadas? Ou será, que quem dá a luz verde é um conjunto de administrativos, munidos de tabelas de excel, que realizam previsões e estimativas de vendas e lucro sobre os videojogos? Administrativos, que são contratados por quem detém o capital, quem nunca jogou um videojogo, nem faz ideia do que isso quer realmente dizer. Alguém que está apenas interessado em rentabilizar os seus excedentes, por valores bem acima daqueles que os bancos estão dispostos a pagar em juros.

Pois... vejamos só dois exemplos estatísticos recentes. Entre 2001 e 2010, o Top 80 de empresas britânicas, distribuiu 88% dos seus lucros pelos acionistas dessas empresas [5]. O que quer dizer que sobrou 12% para quem verdadeiramente trabalhou, para quem dormiu num saco-cama durante meses, para quem deixou de ter vida própria. Em Portugal, um país em crise, sob fortes medidas de austeridade, em que os salários foram cortados em mais de 20% e uma imensa massa de jovens não consegue arranjar emprego, a não ser como estagiário sem remuneração, viu de 2012 para 2013, aumentar o seu número de milionários (pessoas com mais de 30 milhões de dólares) em 11% [6]. Uns trocam a vida por uma paixão, outros pela sobrevivência, enquanto uma elite usa e abusa destes, em nome de mais, e mais, e mais...

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Sobre o Autor
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Nelson Zagalo

Contributor

Nelson Zagalo é professor de media interativa na Universidade do Minho e fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.

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