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OUYA, os problemas de um sonho

Sistemas criativos e sistemas de consumo.

O termo do momento no mundo dos videojogos é sem dúvida OUYA [1]. Uma nova consola de videojogos que promete revolucionar toda a indústria. Não por vir apetrechada com a melhor tecnologia de sempre, nem por ter os jogos exclusivos mais importantes, e nem até por ser barata. Mas apenas e só porque está a ser financiada através de uma rede massiva de doadores, em vez de um grupo pequeno de financiadores. E quando essa rede decide pagar cinco vezes mais do que o valor pedido para construir a consola, é inevitável que o assunto se torne a notícia do momento.

Porque esta não é de todo a primeira consola criada fora do mainstream, fora dos grandes players financeiros dos videojogos. Sempre tivemos consolas do tipo, dezenas delas, uma grande parte fruto de imitações criadas na maior fábrica de cópias do mundo, a China. Mas não apenas consolas de sala, quem não se lembra da quantidade de consolas portáteis imitações da PSP que permitiam ver todo o tipo de conteúdos que a PSP não permitia no início? Deste modo, a grande diferença entre a OUYA e todas essas anteriores experiências está na forma como chega às pessoas, criando previamente o desejo e a expectativa. Como diz Ian Bogost, vendendo "a sensação de uma ideia hipotética, e não a experiência do produto realizado" [2].

Mas de que é feito então este sonho? O sonho OUYA define-se tão simplesmente por um sistema de entretenimento digital democrático. Ou seja, um sistema aberto que permite que todos possam não apenas jogar, mas todos possam também distribuir. Já aqui falámos várias vezes dos problemas de que padecem os criadores de jogos independentes, na sua desigual relação com os grandes distribuidores - Sony, Microsoft e Nintendo. O que a OUYA promete é o fim dessa desigualdade. Os criadores indie, nunca mais terão de se preocupar em negociar com o distribuidor, porque a consola estará totalmente aberta. Qualquer pessoa poderá criar um jogo, colocá-lo online ou partilhá-lo numa pen, e todos os jogadores poderão pegar esse jogo, sentar-se no seu sofá, e jogar sem pedir licença à Microsoft, Nintendo ou Sony.

Mas, será que já não tivemos isto no passado? Sim, e continuamos a ter, chama-se mercado PC. Os videojogos começaram por ser desenvolvidos apenas por pessoas com suficientes conhecimentos de electrónica, até que surgiram máquinas como o ZX Spectrum que permitiriam qualquer programador criar o seu jogo e disponibilizá-lo a todos. A realidade é que este paradigma alterou-se pouco desde o ZX Spectrum, porque continuamos a precisar de pessoas com enormes conhecimentos de programação informática para criar uma obra com linguagem de jogo. E sobre isto a OUYA nada fará. Aliás a própria Microsoft tem tentado trabalhar esta mudança de paradigma, criando ferramentas como o Kodu [3]. Mas no essencial a OUYA será uma máquina para consumo, relegando todo o aspecto criativo para o mundo do PC.

Então, quem é ganha com este sistema? Bem os principais beneficiários poderão ser os criadores indie que verão abrir-se um novo mercado mais acessível. Espera-se que a OUYA sirva para colmatar os eternos problemas evidenciados pela comunidade indie [4], mas poderá esta resolver os problemas do mercado PC? Ou seja, a solução encontrada pela OUYA para lidar com as consolas, de ser um sistema totalmente aberto, poderá colmatar os eternos problemas de distribuição sentidos por quem faz jogos no mercado de PC? Nomeadamente de dar a conhecer os jogos criados, de os tornar acessíveis e disponíveis, de poder garantir retorno do trabalho investido na sua criação para poder prosseguir criando mais jogos?

Pois esta é a questão mais complicada, e aquela que poderá levar ao fundo o sonho. Muito sinceramente não duvido das pessoas por detrás da OUYA, do hardware, do gamepad. Acho-o perfeitamente exequível, o problema está na solução encontrada para combater as consolas concorrentes, a total abertura do sistema. E para quem quiser reflectir sobre isto, temos neste momento uma luta activa exatamente nos mesmos moldes, entre o sistema iOS [iPhone] da Apple e o sistema Android da Google.

Para podermos criar um jogo para o iPhone, mesmo apenas para testes, precisamos de pagar uma licença, e para publicar depois esse jogo temos não só de pagar uma taxa, como fazer passar o jogo por um controlo de qualidade da Apple. Por outro lado num sistema Android era inicialmente possível realizar todo o tipo de experimentações e disponibilizar os jogos abertamente. Independentemente do que valiam ou não, tal como podemos fazer no mundo online. Mas com o passar do tempo o Android Market evoluiu no sentido de dar resposta à questão anterior, criando sistemas de filtragem de conteúdos e criando crivos mínimos de qualidade. No entanto uma das maiores evidências do seu insucesso nos últimos anos em termos de distribuição de conteúdos, é que ao fim de quatro anos apenas, se viu forçada a realizar um re-branding, passando de Android Market a Google Play.

"Mas, será que já não tivemos isto no passado? Sim, e continuamos a ter, chama-se mercado PC."

Ou seja, não é suficiente ter uma boa plataforma tecnológica, como é por exemplo a que surge da relação entre o Android e a Samsung que ombreia em qualidade com a Apple, é preciso mais do que isso. Tal como dizíamos no início do texto, hardware temos tido desde há muitos anos, algum melhor outro pior, a grande questão é o software, os conteúdos, os jogos. São estes que fazem da Microsoft, Sony e Nintendo o que elas são, não é de forma alguma o hardware. Veja-se a irrelevância do hardware no risco que a Nintendo correu ao lançar uma consola com muito menos potência computacional que a Sony em 2006. Ou seja com uma consola com um custo de produção de 1/5 da PS3, a Nintendo manteve-se não só no mercado durante toda esta geração, como esteve em primeiro lugar vários anos. Em temos comparativos veja-se só quanto vendeu cada jogo em cada sistema (jogos não vendidos com consola ou componentes): WII - New Super Mario Bros. Wii - 26 milhões de cópias; Xbox 360: Call of Duty: Black Ops - 12 milhões de cópias; PS3: Gran Turismo 5 - 7 milhões de cópias.

Exposto tudo isto, da experiência que temos dos sistemas que fomos criando no mundo tecnológico, o passado diz-nos que os sistemas abertos são a melhor opção em termos de criatividade. Por outro lado diz-nos também que os sistemas fechados são a melhor solução em termos de geração de receitas. Um dos problemas que se nos coloca é que é difícil ser-se criativo num meio tão exigente tecnológica e intelectualmente sem retorno, pelo menos durante muito tempo. Não é possível viver de jogos que não se vendem, ou que vendem abaixo do dinheiro que precisamos mensalmente para pagar a renda, ligação à internet, água, electricidade, computador e claro comida. Ou seja, para que um criador de jogos possa desenvolver uma experiência continuada de aperfeiçoamento das suas qualidades, precisa de ter alguma forma de garantir essa actividade.

Deste modo não quero dizer que não acredito em sistemas abertos, claro que continuo a acreditar, mas para sistemas de criação, para tecnologias criativas. Tenho dúvidas, e sou muito céptico em relação a sistemas abertos finais de distribuição e consumo de conteúdos.

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Sobre o Autor
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Nelson Zagalo

Contributor

Nelson Zagalo é professor de media interativa na Universidade do Minho e fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.
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