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O Fim do Realismo

Os videojogos como arte.

A Activision apresentou no final de Março uma demonstração técnica, "Character Demo in Real Time" [1], desenvolvida a partir de uma outra demonstração técnica anteriormente apresentada pela NVIDIA a propósito dos avanços no realismo para fazer face aos problemas do "uncanny valley" [2]. Se a apresentação da NVIDIA já impressionava, esta demo da Activision coloca-nos de frente à questão final desta busca da computação gráfica: poderemos estar a ultrapassar as nossas necessidades de realismo? Pode ser demais para a arte dos videojogos ter personagens tão realistas, indistinguíveis de um ser humano?

Ou seja, será que queremos ter um "Call of Duty" audiovisualmente tão realista quanto a realidade? Em que quando dou um tiro em alguém, o impacto visual se aproxima tanto da realidade, que em vez de sentir o prazer e adrenalina do jogo me começo a sentir chocado face à dureza das consequências dos meus atos. Poderemos estar perante um limiar dos videojogos? Enfrentar um personagem olhos nos olhos, 100% audiovisualmente credível, e ser levado a terminar esse "indivíduo" pode tornar-se numa experiência dura e inesquecível para alguns, para outros pode provocar mesmo uma experiência traumática. Se em "Heavy Rain" já éramos colocados à prova numa sequência destas, tínhamos ainda o efeito do "uncanny valley" que nos mantinha ainda bastante cientes da ficionalidade e irrealidade daquele ser. Mas o problema do realismo será apenas uma questão gráfica?

Num protótipo, "First Person Victim" [3], realizado no âmbito de um trabalho de investigação em 2010 por Henrik Schønau Fog foram utilizados pequenos clips vídeo de pessoas reais, dentro de espaços tridimensionais, e foi invertido o papel do jogador. Em vez de herói e lutador, este foi colocado no lugar de vítima, despojado de poder para alterar os eventos trágicos. O jogador era levado através de um número de sequências violentas, em que personagens amigos eram assassinados à sua frente, não podendo fazer nada para alterar o rumo desses eventos. Não podendo usar armas, era levado a experienciar a aproximação de personagens armados sem ter qualquer forma de se defender.

O objetivo do projeto era fazer os jogadores passar por experiências próximas daquelas que vítimas de guerra experimentam. Neste sentido procurava-se criar em vez de um estado reativo e agressivo naturalmente despoletado pelos jogos de guerra, criar um "estado afetivo empático" capaz de levar a compreender efeitos mais realistas de uma guerra. As pessoas que experimentaram disseram ter sentido um enorme desconforto, mesmo aqueles habituados a jogar FPS manifestaram que o seu à vontade como o género não tinha servido em nada para atenuar o sentimento de medo. Ou seja, temos formas de tornar mais realistas as nossas personagens, não apenas pelas técnicas gráficas mas também através de técnicas de dramatização.

Não é por acaso que numa entrevista na EDGE do mês passado sobre o Fox Engine, Kojima se pronunciava desta forma a propósito do realismo: "É possível fazer muitas coisas mais realistas, mas isso não quer dizer que o devamos fazer" [4]. Por ser possível, não quer dizer que seja o que os criadores e jogadores querem. Dou apenas dois exemplos que operam em extremos opostos visuais no campo da representação gráfica de imagens mais duras. Temos "Django Unchained" (2012) de Tarantino, no qual cada vez que se dá um tiro em alguém o sangue enche o enquadramento. E temos "The Hobbit: An Unexpected Journey" (2012) no qual no meio de tanta luta, e tanta morte, o sangue é um elemento quase ausente. Os dois exemplos são opostos, mas de um ponto de vista estético são muito semelhantes, porque ambos fogem do realismo. Se em Django o sangue jorra tão intensamente como se todas as veias do corpo humano se conectassem de imediato ao orifício aberto e expulsassem, naquele segundo, todo o sangue contido no corpo. Em Hobbit, por mais que se corte, bata ou parta o sangue teima em não querer sair.

A vida pode até imitar a ficção, mas raramente queremos ter na arte a realidade tal qual ela é. Esta não é mais do que uma representação do mundo filtrada pelos olhos de alguém. O que vemos num jogo, ou filme, é sempre uma tradução da realidade a partir da perspetiva de um criador, por sua vez plasmada num artefacto que funciona como mediador entre o criador e o recetor. Já no século XIX atravessámos um problema parecido e que devia servir-nos para perceber de que trata a arte dos videojogos. As técnicas de pintura atingiam níveis de realismo impressionantes, era a arte utilizada para preservar, para além da morte, o registo de pessoas, através de técnicas de retrato. Mas depois apareceu a fotografia, e o realismo da tinta deixou de conseguir competir com o realismo das reações químicas à luz. Os artistas da pintura decidiram então que era tempo de se dedicarem à "verdadeira" arte, e deixarem para trás o mero exibicionismo das técnicas do realismo.

Nos jogos atingimos uma encruzilhada semelhante. Talvez tenha chegado a hora de deixarmos para trás a obsessão tecnológica pelo exibicionismo do realismo visual, e passarmos a concentrar todas as nossas energias apenas e só na inovação da expressividade da arte.

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Sobre o Autor
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Nelson Zagalo

Contributor

Nelson Zagalo é professor de media interativa na Universidade do Minho e fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.
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