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Dreamcast: o último samurai da SEGA

Uma consola promissora que no entanto resultou num fracasso.

Por mais ou menos bem concebida que seja uma consola, quando a data de lançamento num território da importância como o norte-americano abre o calendário na página 9/9/99, então algo de extraordinário vai acontecer. É verdade que pode ser lembrada mais depressa por um aparelho que não concretizou, e curiosamente foi isso que acabou por acontecer com a Sega Dreamcast, o último samurai da inesquecível fabricante de consolas, mas a Sega queria muito da Dreamcast, mais do que podem pensar. Apesar do início auspicioso e prometedor, a Dreamcast redundou num fracasso, num diluir de contas prejudiciais para a companhia e sem o retorno esperado, forçando ainda muito cedo a sempre terrível e irreversível decisão de encerrar a companhia como fabricante de sonhos.

A história da Dreamcast é toda menos comum à maioria das consolas, porque apesar das perdas e prejuízos acumulados pela companhia, quando foi tomada a decisão de encontrar uma sucessora para a Saturn, a nova consola foi criada a partir de um "reset". A Sega equipou-a a rigor, converteu bastantes produções arcade como nunca antes o fizera e somou projectos ambiciosos e originais, que ainda hoje figuram entre os mais valiosos na fase de viragem do milénio.

Sobretudo, a Dreamcast foi criada pela Sega com a intenção de redimir e afastar a imagem de uma produtora apostada em criar toda a espécie de plataformas e "add-ons" que não vendiam como a companhia supunha e que, em última instância, apenas criavam confusão e dificuldade de escolha no consumidor.

A Sega Dreamcast possui quatro entradas para quatro comandos. A pensar em jogos multiplayer.

Com um sistema altamente unificado, equipado com modem para a ligação imediata à rede, a Dreamcast foi a primeira consola a marcar a transição para uma era moderna das consolas, as bases daquilo que ainda é transversal aos sistemas da actual geração. Esta semana, Peter Moore, então presidente da Sega para os Estados Unidos em Setembro de 99 e agora na EA, referiu-se à consola via twitter desta forma: "não acho que seja um exagero dizer que a Dreamcast e a sua rede online criaram as bases para o que todos tomamos como adquirido nos dias de hoje: as partidas online, que unem inúmeros jogadores de todo o mundo para jogar, competir e colaborar, assim como permitir que se pudessem adicionar novos conteúdos descarregáveis".

Em 1999 a Sega não tinha apenas a Nintendo a concorrer no mesmo horizonte. A entrada da Sony com lançamento da PlayStation em 1994 não deu a possibilidade de êxito à Sega Saturn e isso levou a Sega a definir muito bem a estrutura da Dreamcast. Os avultados prejuízos entretanto acumulados não se compadeciam com mais outro fracasso e a Dreamcast operava uma espécie de último round para a companhia, uma espécie de última investida para saída da crise e numa jogada de antecipação às concorrentes de modo a conseguir um avanço significativo. O que levou a Dreamcast a ter como concorrentes, numa primeira fase, a PlayStation e a Nintendo 64.

O icónico Jet Set Radio e o magnífico mundos dos grafitis em Tóquio.

A preparação para a Dreamcast começou em 1997. Nessa altura, os responsáveis da companhia para os Estados Unidos pressionaram a Sega, nos escritórios no japoneses, no sentido de estes avançarem para um novo sistema capaz de render a Sega Saturn, com pouca performance no mercado norte-americano, apesar da procura relativamente satisfatória no Japão. A Sega, na pessoa do então presidente Shoichiro Irimajiro, ordenou que duas divisões se dedicassem à produção de um novo sistema dotado de uma arquitectura avançada, com um pólo de desenvolvimento a partir da IBM nos Estados Unidos e outro a ter lugar no Japão. No final e depois de fugas de informação relativamente ao projecto oriundo dos Estados Unidos, o presidente da Sega confirmou como vencedor o design dos engenheiros japoneses, tendo ido ainda mais longe ao estabelecer uma parceria com a Microsoft, com vista à criação de uma versão do Windows CE para a plataforma, de modo a facilitar o trabalho dos produtores de jogos.

A Sega arriscou o mais que pôde com a Dreamcast. Todas as consolas possuíam um modem de 56 kb, através do qual qualquer jogador podia ligar a consola imediatamente à rede e jogar em mundos online como o Phantasy Star Online, mas também entrar para as tabelas de liderança em F355 Challenge com os melhores tempos. A gravação dos dados era operada através do VMU, um sistema visual de memória que se conecta ao comando da consola para gravar posições e dados, e que também funcionava como um sistema portátil quando separado do comando. Além disso, os jogadores podiam levá-lo para algumas arcades (sobretudo no Japão) e transferir progressos e pontuações.

As ilhas flutuantes de Skies of Arcadia.

As largas campanhas de marketing, ligadas a uma ideia de recuperação da Sega com a Dreamcast, implicaram o dispêndio de aproximadamente 100 milhões de dólares. A data de lançamento americano, a 9/9/99 era apenas uma pequena parte do aliciante mostrado aos fãs e novos consumidores. O território norte-americano assumia cada vez mais preponderância depois do Japão e Europa, sendo que naquele a consola tinha estreado quase um ano antes.

As lojas abriram à meia noite da inesquecível data e os jogadores mais ávidos puderam deitar mão a tão tentadora caixa, pelo preço de 199 dólares. O 9 parecia ser um nome de código, presente nos 19 jogos disponíveis no dia do lançamento. Em termos de reservas mais de 300 mil fãs aceitaram o desafio e acorreram às lojas nesse mesmo dia para a levantar. Em pouco mais de duas semanas, meio milhão de jogadores limpou a primeira fornada de consolas. Só no primeiro dia a Sega encaixou quase tudo o que tinha gasto em marketing, aproximadamente 97 milhões de dólares.

A versão Dreamcast da cabine arcade F355 Challenge é uma das melhores conversões. Uma experiência algures entre o realismo e acessibilidade tipicamente arcade.

Com a Dreamcast a Sega transportava o melhor das suas produções arcade. Dada a estreita ligação da estrutura interna com a placa Naomi que servia de motor para as experiências arcade da companhia, estava assegurada uma alternativa às cabines, com produções altamente emblemáticas e apaixonantes disponíveis no conforto do lar. Basta pensar em jogos como Crazy Taxi, F355 Challenge, Virtua Fighter III, Samba de Amigo, Virtua Striker 2, Sega Rally 2, Soul Calibur e muitos outros. É certo que nem todas as conversões resultaram em obras perfeitas e devidamente fieis às congéneres arcade, mas na sua maioria revelaram-se bem sucedidas e imprimiram destaque à consola.

A Dreamcast recebeu ainda produções exclusivas relevantes, como os Sonic Adventure, Jet Set Radio, épicos jogos de role play como Skies of Arcadia, Grandia 2, bons multi-plataformas como Resident Evil: Code Veronica, shmups como Ikaruga e Shenmue, a mais cara produção para a plataforma, criada por Yu Suzuki, um projecto que deveria formar uma trilogia mas que foi abandonado depois do lançamento da sequela, na sequência de custos de produção elevados e pouco antes de a Sega cessar a produção de software como forma de limitar os avultados prejuízos. Ainda hoje os fãs da série suspiram e desesperam pelo terceiro episódio, como se houvesse uma conta por saldar. De resto, Shenmue é um dos jogos que melhor simbolizam a derradeira consola da Sega.

Cover image for YouTube videoWhat's Shenmue Gameplay Dreamcast Part 1

Na Europa e nos Estados Unidos, a Dreamcast não causava má impressão, mas encontrou uma concorrência disposta a levar ainda mais longe o entretenimento interactivo como o conhecemos, com a Sony a obter melhores acordos com produtoras relevantes e no fundo a semear a fonte do que viria a ser uma nova consola e uma fornada de jogos de sucesso que dariam uma relevância à PS2 verdadeiramente ímpar. No Japão, os resultados espelhavam algum desânimo e paulatinamente a Sega foi perdendo apoio de importantes editoras como a Codemasters, que chegou a ter o Colin McRae 2 na caixa da consola mas que não jamais veria a luz do dia na consola branca da Sega e nem sequer contou com o apoio da Electronic Arts. Há quem pense que um leitor de DVD's teria ajudado a Dreamcast a vender mais, algo que contribuiu para o crescimento e sucesso da PS2, mas cremos que isso não bastava para tornar a Dreamcast no sucesso que a Sega precisava.

Em bom rigor, talvez a Dreamcast pudesse ficar mais algum tempo no mercado, mas a sua concorrência, a remessa de jogos que ainda chegava às consolas PlayStation e Nintendo 64, com boas bases de penetração, só criaram dificuldades e tudo ficou mais complicado quando Sony e Nintendo anunciaram as sucessoras das plataformas lançadas a meio da década de noventa. Os jogadores queriam as novas consolas. Pouco mais de um ano e meio depois do lançamento norte-americano e com pesadas perdas no negócio, os 8 milhões de consolas vendidas em Março de 2001 revelaram-se magros para manter de pé o modelo de produção. Três meses antes a Sega tinha revelado a intenção de encerrar a produção de consolas e dedicar-se exclusivamente à produção de jogos, esperando dessa forma reequilibrar as contas. O último Samurai da Sega capitulou.

Volta e meia voltamos a ligar a consola ao televisor. Que jogo escolher?

É um facto que a Dreamcast recebeu bons jogos, exclusivos relevantes e emblemáticos mas nenhum deles foi o "system seller" que a consola carecia. O sucesso do hardware depende do "software" e a Dreamcast foi vítima desse abrandamento, em produção e venda de jogos. Os jogos não venderam consolas e as consolas vendidas não foram suficientes para impedir a empresa de acumular prejuízo. Sem saúde financeira, a Sega transformou-se numa parceira das outras fabricantes de consolas, ao distribuir o seu software e encontrou na Xbox uma espécie de sucessora directa da Dreamcast.

Dificilmente a Sega voltará à produção de consolas, mas os fãs da outrora gigante da companhia continuam a encontrar na sua derradeira consola o último fulgor de uma produção genuína, apelativa e organizada em torno de muitas experiências interactivas que ainda perduram. Mesmo sendo vista como um fracasso, a Dreamcast valeu a pena.

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Vítor Alexandre

Redator

Adepto de automóveis é assim por direito o nosso piloto de serviço. Mas o Vítor é outro que não falha um bom old school e é adepto ferrenho das novas produções criativas. Para além de que é corredor de Maratona. Mas não esquece os pastéis de Fão.

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