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Autogestão na Valve

Novos modelos de gestão para empresas de Tecnologias Criativas.

Esta semana foi largado na web um pequeno livro de instruções [1] que a Valve [2] criou para ajudar os seus novos colaboradores a perceberem o modelo de funcionamento da empresa. A necessidade de criarem este livrinho prende-se, segundo a Valve, com o facto de esta seguir um modelo pouco ortodoxo na gestão da empresa. O modelo operacional da empresa da Valve impressiona, mas é um modelo que parece começar querer impor-se no campo das Tecnologias Criativas, e foi sobre isso que ainda há duas semanas falei no âmbito da conferência "Reflexões sobre o Trabalho, Cultura e Tecnologias Criativas do séc. XXI" em Guimarães Capital da Cultura.

Isto porque se há 50 anos uma grande empresa, por ser grande era quase inquebrável, nos dias de hoje, ela pode ser quebrada quase tão rapidamente como uma pequena. Pela simples razão de que a velocidade de transformação aumentou muito. Isto deve-se em grande medida ao impacto das Tecnologias de Informação. O problema não é as TI estarem a roubar empregos através da automatização, como foi nos anos 70, mas é o aumento de velocidade a que a informação circula, e que faz com que um bater de asas na China tenha verdadeiramente impacto em Portugal. Ou seja a necessidade de conseguir estar em contínua mudança e adaptação é maior, mais sensível, e mais rápida.

Figura 1

Com o passar das décadas a gestão das grande empresas realizou grandes transformações e otimizou imenso a sua operacionalidade. Apesar disso a gestão continua a ser demasiado pesada e burocrática, precisa de demasiadas pessoas em posições intermédias de gestão apenas para conseguir regular centenas de outras pessoas que fazem todas mais ou menos o mesmo. Quando uma área deixa de ter procura no mercado, ficamos com um problema em mãos, e nessa altura o que fazemos com as pessoas deste sector que só sabem fazer aquilo? Todo o desencadear de um processo de reconversão das pessoas é já de si imensamente penoso e moroso. Mas sobre isto pesa imenso a burocracia criada por toda uma estrutura de gestão intermediária, que para além de atrasar o processo, tolhe a pouca motivação que possa existir nas pessoas.

Deste modo acredito, e este documento sobre o modus operandis da Valve vai totalmente nessa direção, que uma das formas de responder a este novo mundo tecnológico e em constante mudança, passa por eliminar toda a lógica de hierarquias e de gestores numa empresa. Embora na minha análise tivesse limitado este novo modelo a pequenas empresas com 3 a 5 pessoas, parece que a Valve o conseguiu implementar numa empresa com quase 300 trabalhadores. Vejamos então de que é feito este modelo.

O modelo de gestão da Valve define-se basicamente pela ausência de três elementos centrais da constituição tradicional de uma empresa: a) hierarquias; b) carreiras; c) gestores. Em contra-ponto aposta tudo na: x) Identificação: a empresa somos nós; y) Empatização: capacidade para trabalhar em grupo e convencer os colegas a trabalhar consigo; z) Responsabilização: ganhamos o que produzimos, dependemos dos colegas e estes dependem de nós, a empresa somos todos nós.

"Assim a Valve classifica-se a si própria como a Flatland, ou seja a empresa na qual não existem hierarquias, ninguém está acima ou abaixo de ninguém, nem mesmo o fundador Gabe Newell".

Assim a Valve classifica-se a si própria como a Flatland (ver figura 1), ou seja a empresa na qual não existem hierarquias, ninguém está acima ou abaixo de ninguém, nem mesmo o fundador Gabe Newell. Desse modo não existem carreiras, ou seja não existem degraus para subir dentro da empresa. Como estão todos ao mesmo nível não precisam de gestores que reportem para cima o que está a ser feito abaixo, vice-versa. Isto não quer dizer que o ordenado é sempre igual, e que não se pode "progredir" dentro da empresa. A Valve faz uso de inquéritos internos em que os trabalhadores se analisam uns aos outros, seguindo quatro grandes categorias: 1) nível de competência e habilidade técnica; 2) produtividade e resultados; 3) contribuição para o grupo; 4) contribuição para o produto. São estes quatro pontos que de ano para ano vão definir o nível salarial da pessoa. É preciso ter em conta ainda, que ao contrário das outras grandes empresas, e porque se segue uma lógica de não hierarquias, os lucros da empresa são distribuídos equitativamente pelos trabalhadores, tendo em conta as variações que este sistema de avaliação interno introduz.

Figura 2

Como facilmente se perceberá o facto de não termos chefes, de estarmos todos ao mesmo nível, não torna o nosso trabalho menos exigente, antes pelo contrário, aumenta a responsabilidade de cada pessoa. E por isso é que as pessoas que são contratadas para a Valve, seguem todas um mesmo padrão em T (ver figura 2). Ou seja, são pessoas generalistas que compreendem e fazem um pouco de tudo numa empresa no campo dos videojogos, mas possuem uma área na qual são muito competentes. E é isto que faz a verdadeira diferença, sem isto era impossível a Valve funcionar desta forma. Aliás eles reconhecem mesmo, que este modelo de trabalhador, os obriga muitas vezes a recusar pessoas que são muitíssimo boas a fazer uma coisa específica, ou que são muito boas como generalistas mas não possuem nenhuma valência em profundidade, mas é o preço a pagar por ter este modelo de gestão empresarial.

Dito isto, este é o modelo que vem sendo adaptado pelas universidades, desde Bolonha, em termos de Licenciaturas e Mestrados. Um aluno no final de uma licenciatura deve compreender e saber fazer um pouco de tudo dentro do seu campo, a licenciatura tem por meta formar um aluno numa banda larga de conhecimento subjacente à área científica em questão. Só a realização de um mestrado vai permitir que este se especialize verdadeiramente num campo da área. As vantagens disto, são aquilo que a Valve procura nas pessoas: autonomia na área de trabalho, e pro-atividade dentro de um campo específico. Dito isto, percebe-se desde já que falamos de modelos empresariais que não servem a quem tem baixos níveis de formação (salvo muito raras exceções), mas essa é uma realidade já bem conhecida por todos os que pretendem ingressar no mundo do desenvolvimento de videojogos.

Apenas para fechar, nos tempos que correm não deixa de ser imensamente gratificante saber que existem empresas, nomeadamente no campo dos videojogos, que seguem políticas internas que colocam o trabalhador, ou seja a componente social à frente da componente económica.

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Sobre o Autor
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Nelson Zagalo

Contributor

Nelson Zagalo é professor de media interativa na Universidade do Minho e fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.

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