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Entrevista a Hugo Guerra, o Character Artist português da Crytek

Estudou em Lisboa e vive hoje em Frankfurt.

Bem-vindo à segunda edição de uma série de entrevistas com portugueses envolvidos na criação de videojogos e que actualmente estão a trabalhar em grandes estúdios. A entrevista é fruto de uma parceria com a Odd School, uma escola de entretenimento digital situada em Lisboa por onde passaram vários portugueses que hoje estão a dar frutos lá fora na indústria dos videojogos. Depois da primeira entrevista com Daniel Picanço da Mercury Steam, a segunda entrevista é com Hugo Guerra, que trabalha neste momento como Character Artist na Crytek.

Olá Hugo. Para os nossos leitores, faz uma pequena apresentação de ti.

Olá. Chamo-me Hugo Guerra, tenho 25 anos e nasci e cresci em Lisboa. Tenho uma licenciatura em Design na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa e frequentei a Odd School onde fiz vários cursos Foundation na área do 3D. Neste momento vivo em Frankfurt na Alemanha e trabalho na Crytek como Character Artist.

Trabalhas em 3D e, pelo teu portefólio, especializaste-te mais em personagens. Como descobriste que o teu futuro passava pelo 3D, e depois mais tarde, porquê a especialização em personagens?

Hugo Guerra, Character Artist na Crytek.

Desde pequeno que gosto de desenhar personagens. Desenhava personagens de Dragonball, Scooby Doo e outros da minha própria imaginação. Foi ainda na escola que tive a sorte de ser apresentado ao 3D por um amigo de família. Ele ajudou-me a fazer a minha primeira nave espacial no Maya e desde então o bichinho cresceu. Habituei-me a usar 3D de forma muito básica para os trabalhos do secundário e da faculdade. Algures aí comecei a mexer no Zbrush. Foi durante o curso de Zbrush na Odd que, depois de tentar um pouco de tudo, percebi que aquilo que queria mesmo fazer eram personagens.

Os teus projectos finais na Odd School acabaram sempre por se destacar. Como é que descobriste a Odd School e como foi a tua experiência?

Acabada a minha Licenciatura, já sabia que o passo seguinte teria algo a ver com 3D, por isso comecei à procura de ofertas de cursos em Portugal. A Odd school destacou-se e fui a uma masterclass para experimentar. O artista convidado (Serge Birault) impressionou-me, tal como a escola, por isso decidi fazer vários cursos foundation. Todo o pessoal da Odd, e em particular os professores, foram impecáveis e dedicados em dar-nos condições para aprender. Os projectos finais foram desafiantes e os resultados superaram sempre aquilo que achava que conseguiria fazer ao fim de um mês. O meu percurso na Odd School foi o primeiro passo nesta carreira, onde tive o primeiro contacto sério com as ferramentas que ainda hoje uso, e onde conheci outros artistas cujo trabalho continuo a seguir.

Sabemos que um dos teus primeiros projectos profissionais, mal terminaste os estudos, foi na produtora “Até ao Fim do Mundo”. Como foi essa experiência?

Pouco depois de sair da Odd fui trabalhar com a Até ao Fim do Mundo num projecto de animação e tive a minha primeira experiência a trabalhar como Character Artist numa equipa de produção. Foi uma experiência exigente, onde pude pôr em prática aquilo que aprendi e me deparei com novos desafios ligados à realidade profissional da área. Foi também a primeira vez que senti na pele a mudança na relação que temos com aquilo que começamos a fazer por gosto quando isto se torna numa profissão. As expectativas são outras, a gratificação pessoal tem de ser equilibrada com as exigências profissionais. É preciso fazer concessões e a motivação centra-se em fazer a minha parte pela equipa. Acabei o projecto na Até ao Fim do Mundo com experiência de produção, que era a parte que faltava ao conjunto de ferramentas de que iria precisar como profissional mais à frente.

Uma das criações de Hugo Guerra para Robinson: The Journey

A partir deste ponto como foi a tua evolução profissional e o teu percurso até chegares à Crytek?

Depois da Até ao Fim do Mundo procurei trabalho freelance e juntei-me a um grupo de amigos e ex-alunos da Odd (este grupo tornou-se o Hideout Studio). Tanto no contexto do grupo como individualmente trabalhei em vários projectos, desde publicidade, jogos indie e 3D Printing. Além disso, e entre trabalhos, participei em concursos online e fiz trabalho pessoal para o meu portfólio. A certa altura comecei a candidatar-me a estúdios conhecidos de VFX e jogos em Portugal, mas fiquei algo desmotivado com a falta de respostas e rejeições. Durante essa altura vi um anúncio para a Crytek (Alemanha) e, conhecendo a fama deles como empresa de topo em gráficos, candidatei-me. Fui entrevistado por skype, fiz o Art Test que me pediram, fui entrevistado de novo (desta vez em Frankfurt) e, por fim, dei por mim a mudar-me para a Alemanha.

"Fui entrevistado por skype, fiz o Art Test que me pediram, fui entrevistado de novo (desta vez em Frankfurt) e, por fim, dei por mim a mudar-me para a Alemanha"

Já vives e trabalhas em Frankfurt há um ano e meio. O que nos podes dizer da cidade agora, e como correu no início a tua adaptação a um novo país e um trabalho?

No dia em que cheguei, conheci aqueles que seriam os meus colegas de trabalho e de casa durante os próximos meses. Fui comer ao único sítio aberto que consegui encontrar num domingo à noite em Frankfurt: uma pizzaria turca! A empresa deu-me apoio em todos os aspectos da minha mudança e na minha inserção num país novo, incluindo casa temporária, custos de transporte das minhas coisas de Portugal, e toda a burocracia de segurança social e afins. Os primeiros tempos foram mais fáceis do que estava à espera. Na Crytek comecei como Júnior, logo, os meus primeiros dias foram mais leves; mas depressa entrei no ritmo da empresa e a assumir cada vez mais responsabilidades e a ter tarefas mais difíceis. Como toda a gente, tive momentos em que as saudades de Portugal apertaram mais, mas depressa entrei na nova rotina e habituei-me a usar apenas o inglês no meu dia-a-dia.

A Crytek é uma das empresas mais conhecidas de videojogos na Europa, com sucessos como Crysis, Farcry e Ryse. Como é a empresa por “dentro” e, agora, trabalhar para ela?

Ver esta empresa a funcionar de dentro é fascinante. São mais de 300 pessoas com diferentes funções envolvidas em todas as fases de desenvolvimento de um jogo. Todas as produções têm as suas peripécias, e agora entendo bem quão necessária é uma boa gestão para coordenar estas equipas e ultrapassar todos esses obstáculos. Tenho a sorte de trabalhar com pessoas de várias nacionalidades com perspectivas diferentes do mundo, entre as quais estão artistas fantásticos com quem estou sempre a aprender. E claro, assistir ao desenvolvimento do Robinson e ver as criaturas em que trabalhei a popular esse mundo foram experiências incríveis.

Como é o teu dia a dia normal como character artist na Crytek?

Quando me são dadas personagens novas para modelar, falo com o Concept Artist e com o Art Director para conhecer mais a fundo a tarefa e oferecer o meu input. Discuto a abordagem com o meu Lead e com outros colegas também, pois grande parte da nossa evolução parte dessa partilha. Num dia normal posso estar a reunir referências, a trabalhar no high poly, esculpindo no zbrush, ou a fazer retopologia ou texturas se estiver mais avançado. Pelo meio meto um joguinho de matraquilhos, converso com colegas e ao fim do dia de sexta-feira abrimos umas cervejas.

A Crytek é uma das principais empresas que, neste momento, está a investir mais em Realidade Virtual. Já tinhas tido algum contacto com VR antes? E quais as maiores diferenças de fazer um videojogo “normal” para um em VR?

Quando ainda estava em Portugal testei o Oculus Rift DK1 durante a Lisbon Games Week e fiquei pouco impressionado. Foi durante a minha entrevista na Crytek que, quando me mostraram as demos do estúdio na versão quase final do Oculus Rift, entendi todo o hype à volta dessa tecnologia. A sensação de presença foi algo que nunca senti a jogar num monitor e, embora agora já não seja novidade, continua a ser uma experiência sem igual. No que toca a fazer 3D para VR, pouco muda, pelo que observei. Algumas técnicas para simular detalhe nos jogos tendem a parecer particularmente falsas, por isso dependemos menos dessas técnicas e usamos contagens poligonais mais altas do que em jogos de monitor tradicionais. Isto levanta desafios relativamente à performance do hardware, que continua a ser a grande batalha do VR.

Para os jogadores, e na tua opinião na pele de alguém que ajuda a desenvolver mas também joga, como é que VR vai mudar a experiência dos jogos?

"Quando me mostraram as demos do estúdio na versão quase final do Oculus Rift, entendi todo o hype à volta dessa tecnologia"

Como o VR vai mudar a experiência dos jogos não sei dizer. Como sabemos, o hardware é recente e tem um preço proibitivo. Só agora começa a haver um catálogo de jogos que justifique a compra. Por outro lado, tendo experimentado, sinto que nada se compara à sensação de jogar em realidade virtual e à imersão que isso dá. Ver vídeos no youtube não lhe faz justiça. É mesmo preciso experimentar para saber.

Neste momento a Crytek lançou os Jogos “The Climb” (de escalada em VR) e “Robinson: the Journey” (aventura em VR). Ambos são aventuras com momentos emocionantes para o jogador, principalmente quando vividos em VR. Sendo mais exigente deste ponto de vista, não poderá causar alguns dos males mais comuns de VR, como por exemplo enjoo? Ou isso era um problema apenas dos primeiros protótipos de óculos VR?

No início do desenvolvimento de jogos para VR o enjoo era algo comum. Há vários factores nos sistemas de locomoção a ter em conta para mitigar esse efeito. Grande parte do trabalho dos programadores foi abordar esses mesmos problemas, e pelo que tenho visto, com sucesso

Existem muitos videos online de pessoas a testar VR com reações muito engraçadas. Passaste por isso ou tens alguma história do género para contar?

Vi pessoas que, enquanto jogavam Climb, perdiam o equilíbrio quando decidiam olhar para baixo ou que se recusaram a dar um único passo por causa de vertigens. Várias pessoas assustam-se com alguns dos dinossauros de Robinson e chocam contra a pessoa do lado com o salto que dão. A imersão causa reações incríveis, especialmente a novatos em realidade virtual .

Como artista 3D, quando trabalhas para projetos assim, o que preferes fazer: personagens humanas, monstros, ou props/ambientes?

Sendo character artist, raramente pego em algo que não sejam personagens e, dentro destas, prefiro fazer humanos, algo que tenho feito principalmente em trabalho pessoal. Também gosto de fazer hard surface (armaduras ou robôs) e criaturas de vez em quando. Normalmente tento fazer em casa aquilo que não estou a fazer de momento na empresa.

Um modelo 3D detalhado da autoria de Hugo Guerra.

O conceito para um modelo já te chega completamente definido ou tens alguma liberdade para desenvolvê-lo?

Dependendo da personagem posso ajudar a desenvolver o concept ou posso recebê-lo finalizado e ter apenas de o executar. Felizmente, há sempre diálogo com os concept artists e espaço para o nosso input e colaboração durante a pré-produção. Passando do concept para o modelo final, tenho sempre chance de dar o meu input.

Agora que trabalhas em videojogos, nos teus tempos livres ainda jogas muito? Quais os últimos que te roubaram mais tempo?

"Recentemente apenas pego em jogos que dêem para sessões isoladas curtas ou que possa acabar em poucas horas"

Ironicamente, trabalhando em jogos, acabo por ter menos paciência para jogar nos meus tempos livres, visto que passo o dia nesse mundo. Há excepções, claro. Recentemente apenas pego em jogos que dêem para sessões isoladas curtas ou que possa acabar em poucas horas como o novo Hitman, Gwent e Kentucky Route Zero.

A indústria de videojogos em Portugal está a crescer todos os anos. Como vês o desenvolvimento de jogos por cá?

Já há uns anos que vou seguindo a nossa indústria de jogos e as várias Game Jams que vão acontecendo. Há developers bastante talentosos, com bons projectos, nesta fase embrionária mas vejo, geralmente, uma grande falta de artistas nessas equipas. Sendo essa a área que entendo melhor, apenas espero que haja no futuro condições para que os artistas portugueses possam ficar em Portugal e que tenham a oportunidade de contribuir para a nossa jovem indústria de jogos.

Está nos teus planos voltar a portugal? Se receberes um convite para trabalhar em videojogos cá?

Comparada com o resto do mundo, na minha opinião, a grande maioria das empresas portuguesas ainda não é competitiva que chegue na área dos jogos, no que toca a desafios técnicos e criativos. No entanto, vejo isso lentamente a mudar e gostaria imenso de um dia voltar sem sacrificar esses mesmos desafios.

Mais um modelo 3D de Hugo Guerra para Robinson: The Journey

Com todos os projectos e a dimensão dos mesmos a acontecer na Crytek, ainda fazes os teus projectos pessoais?

Para não perder o “calo”, vou sempre tentando fazer trabalhos pessoais e tento com isso também diversificar o meu portefólio. Embora não o faça muito, sei que é importante manter uma presença online nos sites do meio, Artstation, Zbrushcentral, Polycount, etc., especialmente num início de carreira. Tenho também um pequeno projecto musical, que sempre me ajuda a desanuviar do 3D de vez em quando

Além de videojogos, tens mais áreas de trabalho que gostavas de explorar?

Durante os meus tempos freelance, fiz algumas figuras para 3D print. Estas implicam um conjunto de desafios bastante diferentes de Character Art para jogos, mas consideraria essa área como uma alternativa. No final do trabalho, é algo especial ter e tocar numa representação física de uma escultura que fiz.

Quando fizeste o teu percurso na Odd School, os cursos avançados ainda não estavam tão desenvolvidos, mas as novas turmas ainda olham para o teu percurso e trabalhos. Para esses alunos que conselhos podes deixar para triunfar na indústria?

"Horas extra são comuns (e em algumas empresas não são recompensadas) e o trabalho pode ser esgotante"

Tendo em conta que a indústria está sempre a mudar, não sei se consigo dar algum conselho definitivo que leve alguém ao sucesso - afinal ainda estou muito no início do meu próprio percurso. Posso, no entanto, dar algumas dicas sobre aquilo que alguém pode realmente esperar. A indústria dos jogos não é, nem nunca foi, um mar de rosas. Quem quer segurança completa numa empresa não a vai ter nesta indústria. Toda a gente com quem falei, independentemente de anos de experiência e do número de empresas onde esteve, sabe que produzir jogos é caro e um fracasso pode levar uma empresa à falência. Horas extra são comuns (e em algumas empresas não são recompensadas) e o trabalho pode ser esgotante. No entanto, bons profissionais nunca ficam muito tempo sem emprego. Afinal, esta é a maior indústria de entretenimento no mundo e está sempre a precisar de artistas, programadores, game designers, etc. para funcionar. Quem tiver paixão pela área e conseguir viver com estes desafios, tem a chance de ser pago para fazer algo de que gosta, o que é incrível. Mas não deixa de ser difícil, nem deixa de ser um emprego. De resto, não esperem ter o portfólio perfeito, não se deixem intimidar pelo desafio, façam exercício e larguem o computador de vez em quando.

Tens algumas palavras para terminar?

Quero agradecer à minha família, que sempre me apoiou na minha escolha de carreira; aos meus gatos, que me fizeram sempre companhia nas noitadas de trabalho; e à minha namorada que me acompanha nesta aventura.

Obrigado Hugo, pelo teu tempo despendido.

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Robinson: The Journey

PS4, PC

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Jorge Loureiro avatar

Jorge Loureiro

Editor

É o editor do Eurogamer Portugal e supervisiona todos os conteúdos publicados diariamente, mas faz um pouco de tudo, desde notícias, análises a vídeos para o nosso canal do Youtube. Gosta de experimentar todo o tipo de jogos, mas prefere acção, mundos abertos e jogos online com longa longevidade.
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