Skip to main content
Se clicares num link e fizeres uma compra, poderemos receber uma pequena comissão. Lê a nossa política editorial.

Life is Strange - Análise

O peso do mundo e o tempo a escapar.

Eurogamer.pt - Recomendado crachá
Todas as imperfeições da adolescência num espírito cool que nos prende até ao fim. Pena o ritmo lento, mas as escolhas têm peso real.

Recordo-me vivamente das minhas aventuras e desventuras dos tempos de adolescente, mesmo ali no limiar da idade adulta. Uma vida completamente pacata, igual à de tantos outros que constituíam a imensidão que me rodeava, mas sempre com sede de grandiosidade. Sempre a almejar uma singularidade, um factor que me distanciasse dos demais e que fizesse de mim algo especial, acima do que o quotidiano havia reservado para mim. As duas coisas mais fascinantes naqueles anos são mesmo as mais simples: o tempo e a liberdade. Nessas idades é tão fácil sentirmos que o peso do mundo está sob os nossos ombros, sentirmos que o tempo nos escapa pelos dedos e que por muito que se corra, jamais teremos pernas para realizar todos os planos estabelecidos para contrariar a nossa banalidade. Foi precisamente por isto que Life is Strange do Dontnod Entertainment me fascinou, a forma como pega no quotidiano e mostra com fantasia o quão especial é, mesmo quando sentimos ser tão banal.

Life is Strange foi uma jornada digital dividida em cinco episódios, agora lançada como um jogo completo em formato físico, centrada nos incalculáveis laços de amizade que estabelecemos numa das fases mais importantes da nossa vida. Mais do que amizades, temos também o recordar de diversos elementos da nossa adolescência como aquelas pessoas que se tornaram rivais, aquelas que se tornaram temidas, as que nos surpreendiam e mereciam a nossa admiração e todo aquele drama de espírito adolescente. Já alguma vez pensaram em como temiam perante problemas que pareciam definir o vosso mundo para todo o sempre, e agora pensarem que todo aquele micro-universo era meramente uma gota no oceano?

A nossa porta de entrada para esta viagem nostálgica, de língua afiada e diálogos escritos com uma preciosidade cultural sem rival, é Maxine Caulfield. Esta aluna do 12º ano da Academia Blackwell, juntamente com a fictícia Arcadia Bay e os seus habitantes, são um deslumbrante diorama para os dramas da adolescências de quem ainda não sabe o que quer ser mas com toda a convicção está firme quanto ao que não quer ser. Max, como gosta de ser chamada, é uma apaixonada pela fotografia e irá ter os seus dilemas, iguais a tantos outros que já vimos em séries de televisão ou cinema. Ela apenas quer o seu espaço para existir e descobrir o que lhe dá prazer na vida. Pelo caminho, se conseguir fazer amigos e ajudar quem mais gosta, melhor ainda.

No entanto, tudo muda quando descobre que a sua melhor amiga, a irreverente, ousada, e extrovertida Chloe Price, está prestes a ser assassinada na própria escola de onde foi expulsa, mas na qual Max ainda é aluna. Perante o pânico, Max descobre que consegue retroceder no tempo e mudar o rumo dos acontecimentos. Esta componente de fantasia misturada com o quotidiano e os dramas de uma normal adolescente, são muito possivelmente os principais responsáveis pelo encanto que Life is Strange poderá exercer sobre o jogador. Especialmente quando Max tem uma visão de um tornado a varrer Arcadia Bay e pondera sobre como os mais ricos valores de um adolescente, liberdade e tempo, lhe parecem estar a ser bruscamente roubados.

Isto resulta numa experiência que poderia ser descrita como uma aventura gráfica na qual teremos que explorar os mistérios de Blackwell e Arcadia Bay. Inevitavelmente, Max vai acabar por se meter em problemas e será forçada a usar os seus poderes. Super Max, como lhe chama ocasionalmente Chloe, apenas quer ser mais uma entre outros tantos, mas ao mesmo tempo quer ser diferente, quer ser adolescente sem os dramas de quem terá mais responsabilidades do que imagina conseguir lidar. Ainda se lembram daquela fase decisiva em que, mesmo com o mundo em automático, sentiam que tudo estava a ser decido por vocês? É precisamente o que o Dontnod ousou capturar e com um toque de fantasia à mistura, ousou glorificar.

Life is Strange é um hino às incertezas da vida, um imperial "e se" que se torna no debate central das nossas vidas numa fase em que todos olham para nós como quem procura certezas e repudia dúvidas. Identidade e memória são alguns dos valores que mais almejámos nesta vida, sermos alguém e sermos relembrados. A questão é porquê e por quem? Frequentemente senti que, independente da protagonista ser uma mulher, estava perante uma janela que me permitiu viajar no tempo e esse é o objectivo principal deste Life is Strange, permitir que o jogador viaje no tempo com memórias invocadas por estes acontecimentos.

Descobrir mais de Max e do mundo que a rodeia, descobrir como ela pretende ser especial sem perder o banal, o eterno dilema para quem nada mais quer ser do que si mesmo, é o ponto de partida para uma trama que estava desde logo marcada para a grandiosidade. Como é de esperar, o jogo conta com um design restrito que pretende realçar os pontos fulcrais do enredo e temos que dialogar com personagens e pesquisar pelos cenários por pistas que aprofundam o nosso conhecimento deste mundo. Podem ter a certeza que investigar e investir tempo para descobrir mais fios do enorme novelo que se coloca perante Max será gratificante mais tarde.

Para isto, somos convidados a experimentar diferentes opções nos diálogos, afinal Max pode recuar no tempo, e a fazer as coisas de forma diferente. Nos diálogos existem mensagens escondidas que apenas compreenderemos mais tarde mas nos quebra-cabeças, que compõem alguns momentos de Life is Strange, será a mecânica de retroceder no tempo que ditará uma experiência que não se consegue ter em mais nenhum outro jogo. Nesta experiência tão focada na narrativa, caminhar por corredores disfarçados ou ficar privado do controlo do personagem por largos minutos é um dado adquirido, mas temos momentos que desafiam as nossas capacidades.

Apesar da sua natureza simples, Life is Strange desafia o jogador com os seus quebra-cabeças e a dado momento é fácil começar a dar graças pela mecânica de retroceder no tempo. É uma das imagens de marca deste jogo e facilmente entendemos porquê. Na maior parte do tempo temos que caminhar pelos labirintos que são os diálogos com os diversos personagens para separar a componente quotidiana da fantasia, mas rapidamente vão perceber que tudo é muito maior do que inicialmente sugerido. Existe uma enorme trama para ser descoberta e manipular o tempo será algo que trará consequência muito graves para Max.

Life is Strange poderá demorar um pouco a "arrancar". O primeiro episódio é um bom isco e o ritmo do segundo episódio até vos poderá fazer sentir que foram enganados. No entanto, quando sentirem que, como as melhores séries de TV, quando estão afastados daquele diorama estão sempre a pensar nos eventos que assistiram, saberão bem lá no fundo que estão agarrados. Quando dei por mim boquiaberto a olhar para o ecrã e a pensar no que poderia ter acontecido se não tivesse feito certas opções, foi quando percebi que era impossível não respeitar o impacto alcançado pelo estúdio. De igual forma, as nossas decisões são glorificadas quando nos é devidamente mostrado o peso delas. Recordo vivamente ter ficado devastado por uma escolha que fiz no primeiro episódio quando a realidade me confrontou no terceiro episódio. Altamente coerente e com ramificações que vos podem impressionar.

"Uma identidade que nos define e memórias de quem nos conhece, Life is Strange mostra como o banal consegue ser fantástico."

Ver no Youtube

Mesmo não sendo perfeito, até porque é isso que nos faz humanos, Life is Strange consegue mesmo cativar o jogador e captar aquela fase tão melodramática da nossa vida. O facto de o fazer com um factor fixe tão elevado é um extra impressionante. A experiência em si não é nova mas a forma como foi tão meticulosamente estruturada merece ser aplaudida. Pena que uma escolha de design teime ainda em fragilizar estas experiência: quando temos diversas opções de diálogo apenas vemos uma ou duas palavras que na grande maioria dos casos não explicam em pleno todo o contexto da frase que será dita. Frequentemente tive que recuar no tempo para dizer outra coisa porque a frase não era nada o que queria dizer, apesar do texto nas escolhas sugerir que seria.

Algumas situações não conseguem o impacto merecido, principalmente algumas vistas no último episódio, muito por culpa dos actores virtuais que não conseguem transmitir as emoções necessárias para tal, mas ainda assim, é fácil estabelecer uma ligação com estas personagens. A dado momento sentimos que somos parte de Arcadia, de Blackwell, e a verdade é que somos, Max assegura-se disso. Os trabalhos dos actores que dão voz aos personagens é altamente competente e não é por acaso que a banda sonora foi aclamada como uma das melhores de 2015. A junção entre o elemento visual e sonora é um atestado ao bom gosto do estúdio.

O estilo visual escolhido para o jogo relembra-nos de uma espécie de aguarela. Como se ainda estivesse fresca, altamente delicada e susceptível a transformações, é muito possivelmente um reflexo de toda a alma do jogo. Não pelas personagens em si ou pelos locais, mais pela forma como reflecte a temática de causa e consequência, de como tudo parece tão efémero mas ainda assim vincado e definitivo quando sentimos o coração apertado ao ver os acontecimentos. Será fácil ficar impressionado com a veia artística que o Dontnod conseguiu demonstrar, mesmo que tecnicamente e tecnologicamente não vá impressionar alguém. Será pelo seu design e criatividade artística que Life is Strange te vai impressionar.

Life is Strange é provavelmente o melhor jogo do seu estilo. Uma aventura gráfica que combina o banal com o extraordinário. Regressar aos tempos de liceu e tão subtilmente encontrar situações que se transformam em atestados de como crescemos enquanto indivíduos é algo do mais delicioso de encontrar num videojogo. É certo que ocasionalmente podemos gritar por mais liberdade e facilmente encontrar formas de contornar o peso que o enredo cria, mas esta é uma jornada que nos explica de forma simples e prática a consequência dos nossos actos. Até o mais simples poderá ter consequências que nem sequer imaginámos. Apenas me posso despedir agradecendo a Max, Chloe, Nathan Prescot, Kate Marsh, Victoria, Joyce, Mark Jefferson, Frank, Rachel Amber, Mr. Jefferson, o reitor, e a todo o talento no Dontnod por ter criado um drama adolescente com uma mensagem universal que jamais esquecerei.

Read this next