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Videojogos como instrumentos de controlo emocional

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Muitos estudos realizados nos últimos anos no campo da psicologia [1] vêm demonstrando que as crianças que têm um maior autocontrolo, maior capacidade de exercer ação focada por comando próprio, têm maior possibilidade de se tornar pessoas bem sucedidas. São crianças que à partida são capazes de ultrapassar mais facilmente as fases de descontrolo muito próprias da adolescência, como a cedência às drogas ou ao álcool. As crianças com maior capacidade de controlo apresentam desempenhos cognitivos mais elevados, porque são mais capazes de controlar os seus instintos, e agir recorrendo à consciência. Quanto mais controlo temos sobre as nossas ações, mais consciência temos sobre aquilo que nos rodeia, e mais possibilidades temos de poder conduzir a nossa vida.

Ora esta forma de controlo cognitivo não é algo que simplesmente nasce connosco, é antes algo passível de ser treinado. Como referem vários outros estudos [2] a plasticidade cerebral é hoje um dado adquirido. Ao longo da nossa vida podemos aprender a controlar os nossos estados emocionais e a exercer sobre eles ação consciente. Nos últimos anos foram realizados imensos testes no campo do controlo emocional. Um exemplo desses testes passava por analisar a variação fisiológica dos sujeitos quando era rebentado um petardo perto destes. Acreditava-se que o ser humano, totalmente apetrechado para reagir a grandes barulhos, no sentido de garantir a sobrevivência, era incapaz de não reagir. Descobriu-se no entanto que pessoas que treinavam efetivamente a sua mente todos os dias para exercer controlo emocional, ou seja que praticavam meditação profunda, conseguiam eliminar completamente o estrondo da sua mente e do seu corpo, não restando qualquer variação fisiológica medível.

"Neste livro Juul fala da aprendizagem através do erro, e do gosto pelo erro, diz-nos que 'os videojogos são a arte do falhanço… uma arte singular capaz de nos preparar para o falhanço, e que nos permite experienciar e experimentar com esse falhanço'."

Esta noção de controlo cognitivo e emocional era até há pouco tempo uma ideia completamente descabida no mundo da ciência. Tanto que o próprio António Damásio quando começou a apresentar o seu discurso ao público em geral [3], apresentava as emoções como respostas automáticas do nosso corpo. Chegava a comparar as mesmas com os espirros, algo que o ser humano não conseguia controlar. No entanto nos livros subsequentes, este discurso sofreu alterações. Quando realizou leituras fisiológicas da pianista Maria João Pires, enquanto esta tocava os “Nocturnos” de Chopin, verificou que a performer conseguia exercer um total controlo sobre as emoções no seu corpo, eliminando qualquer traço da sua ocorrência fisiológica [4]. Diga-se, em total sintonia com os resultados obtidos com as pessoas que praticam meditação profunda.

Dito tudo isto, o que é que isto tem a ver com os videojogos? Antes de responder, devo apresentar ainda um último trabalho, o livro “The Art of Failure” de Jesper Juul que acaba de ser publicado nos EUA. Neste livro Juul fala da aprendizagem através do erro, e do gosto pelo erro, diz-nos que “os videojogos são a arte do falhanço… uma arte singular capaz de nos preparar para o falhanço, e que nos permite experienciar e experimentar com esse falhanço” [5]. Ou seja, os videojogos dão-nos a oportunidade de experienciar o erro, de nos tornarmos consciente deste, até ao momento em que o conseguimos ultrapassar. Ao contrário do jogo de casino, não existe aqui o aleatório, ou seja a sorte, para ganharmos precisamos de nos esforçar para compreender porque errámos. Precisamos de tentar as vezes que forem necessárias até conseguirmos ultrapassar o obstáculo, não de um modo automático, mas de um modo totalmente consciente das ações que temos de executar. É o falhanço que nos faz acreditar que é nossa responsabilidade agir, que aquilo que acontece à nossa frente, no jogo, é consequência das nossas ações. Neste sentido, o jogador não se distingue muito do performer de piano, que treina até conseguir executar a peça na perfeição.

Ou seja, a grande mensagem que um videojogo tem para passar, independentemente do tema narrativo abordado, é extremamente benéfica para a construção cognitiva do ser humano, porque este apreende desde muito cedo, que só a ação consciente e responsável o compensa. Só um controlo dos seus desejos e instintos, exercido de forma meticulosamente consciente, o gratifica. Ou seja, só conseguirei saber como termina o jogo, se conseguir dominar e ultrapassar todos os seus obstáculos. Ou só conseguirei terminar em primeiro lugar, se treinar repetidamente as minhas ações, minimizando o erro ao mínimo possível. Esta é a grande mensagem dos videojogos. E é exatamente isto que me leva a acreditar que uma sociedade que joga videojogos, é uma sociedade mais capaz de lidar com a realidade inconstante, e por vezes injusta, porque estará mais preparada em termos cognitivos para o fazer.

  • [1] "Thinking, Fast and Slow", (2011), Daniel Kahneman
  • [2] "Happiness", (2007), Mathieu Ricard
  • [3] "O Erro de Descartes", (1994), António Damásio
  • [4] "O Sentimento de Si", (1999), António Damásio
  • [5] "Are Video Games For Losers?", Wall Street Journal, 18.03.2013,

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Sobre o Autor
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Nelson Zagalo

Contributor

Nelson Zagalo é professor de media interativa na Universidade do Minho e fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.
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