Skip to main content
Se clicares num link e fizeres uma compra, poderemos receber uma pequena comissão. Lê a nossa política editorial.

Ávidos por padrões

Porque jogamos Tetris.

O BBC Future tem um artigo esta semana em que discute as razões porque jogamos Tetris [1]. Stafford usa um conceito da psicologia denominado efeito Zeigarnik, que demonstra que temos maior facilidade em recordar a tarefa que estávamos a realizar quando esta é interrompida do que quando esta foi completada. A razão que deu origem a este estudo foi o caso dos empregados de mesa que são capazes de se lembrar de vários pedidos em detalhe enquanto estão a decorrer, mas que logo a seguir são apagados da sua memória. Stafford pega nesta ideia e aplica-a ao Tetris, dizendo que temos uma ânsia por terminar tarefas.

O problema desta explicação é a própria teoria que se foi buscar. A teoria é de 1927 e foram entretanto feitos estudos que não conseguiram replicar os mesmos efeitos que foram publicados por Zeigarnik. E a realidade é que se evoluiu no campo da realização de testes psicológicos. Hoje sabemos melhor como realizar testes para evitar viés. Nomeadamente no campo da memória evoluímos muito, e sabemos muito melhor como esta funciona, sabemos distinguir memória de curto prazo ou de trabalho de memória de longo prazo. Além disso a nossa memória está intimamente ligada às nossas emoções. Quanto mais forte for uma emoção que mexa connosco mais difícil será esquecer o evento que a proporcionou.

O exemplo de saber onde estavam quando as Torres Gémeas foram atacadas é muitas vezes utilizado para demonstrar esta teoria. Praticamente todos os que viram o choque do segundo avião em directo na TV sabem aonde estavam nesse momento, e a razão para tal prende-se com a forte emocionalidade sentida nesse momento. Em termos neurológicos sabemos hoje que as emoções providenciam uma espécie de marca que regista no nosso corpo a memória associada à emocionalidade sentida. Ou seja nós não recordamos o embate do avião por não sabermos se ia haver um terceiro embate, mas porque ele nos emocionou, porque ele mexeu connosco.

O interessante deste efeito de Zeigarnik é que ele chegou a ser comparado às teorias da perceção visual da Gestalt, que são exactamente as teorias que melhor respondem à razão pela qual jogamos Tetris, ou porque sentimos suspense num filme, ou porque ficamos "pendurados" nos "ganchos" narrativos das séries de TV. E tudo isto se define pelo simples princípio de que a soma é maior do que as partes. Ou seja quando interagimos com a realidade, a nossa mente está constantemente à procura de padrões visuais, sonoros, textuais ou outros que possam ganhar um sentido explicativo das partes. Ou seja, estamos constantemente a re-organizar mentalmente a realidade que nos rodeia, e sempre que o conseguimos o nosso cérebro liberta hormonas de satisfação, quando não conseguimos, e o trabalho fica incompleto, entramos em ansiedade, liberta-se o stress, e ficamos alí "pendurados" incapazes de esquecer, incapazes de abandonar aquela ideia enquanto não compreendemos o todo que une aquelas ideias ou acções, o padrão.

Os princípios da Gesltalt de Max Wertheimer partem da lei da simplicidade afirmando que percebemos o mundo a partir das suas unidades mais simples, e que construímos significados apenas às leituras de conjunto. Para isso utilizamos princípios mentais como distinguir fundo da forma, a similaridade entre elementos; a proximidade a que estes se apresentam; fechamos mentalmente elementos visuais ou sonoros incompletos, mas de que conhecemos a forma que pretendiam desenhar; seguimos a continuidade percepcionada entre distintos elementos; procuramos avidamente por simetrias entre espaços e elementos e sempre que esta falha ficamos ali a tentar perceber porque falha.

No Tetris acontecem todos estes princípios com maior inclinação para o fechamento e simetria, queremos constantemente re-organizar os elementos, queremos encontrar o elemento que fecha a linha e contribui para a ordem entre o caos de peças desorganizadas. Mas não só, é necessário que as regras se alterem de algum modo se não ao fim de pouco tempo entraríamos em total monotonia. O nosso cérebro deixaria de nos dar hormonas de satisfação porque passaríamos a conseguir prever exatamente como cada peça se encaixaria atingindo níveis muito baixos de desorganização. E nesse sentido o que Alexey Pajitnov teve de fazer foi aumentar a velocidade de caída das peças de nível para nível. A velocidade diminui a nossa perceção de como se fecha a linha, aumentando o caos visual no ecrã contribuindo para aumentar o stress em busca de soluções que ajudem a conseguir fechar as linhas e assim receber as hormonas de satisfação.

Assim o que nos move no Tetris não é uma motivação intrínseca para terminar tarefas que deixámos inacabadas. O que nos move é uma força intrínseca para a organização do mundo que nos rodeia, como diz Stephen Jay Gould somos "ávidos por padrões", estamos continuamente a padronizar o mundo que nos rodeia e a dar-lhe sentido. Psicologicamente estamos constantemente a criar ordem no caos, em busca de estrutura e harmonia que conecte os elementos distintos. Por isso gostamos de aprender coisas novas, por isso adoramos histórias que nos deixam a adivinhar como será o final, e claro adoramos jogar que é uma actividade que vive essencialmente desta nossa predisposição mental para a re-organização.

No final do texto Stafford pergunta-se porque temos este tipo de mecanismos cognitivos. Muito simples, porque precisamos deles para simplesmente sobreviver. Já assim era na selva para fugir aos predadores, imaginem o que seria viver numa cidade enorme com milhões de pessoas, de carros, de objectos em constante movimento e não sermos capazes de ver o todo, analisarmos toda a realidade apenas elemento a elemento, rapidamente éramos atropelados ou cairíamos por um buraco de esgoto aberto à nossa frente. O nosso cérebro mapeia continuamente o mundo dentro da nossa cabeça para que possamos tomar constantemente as melhores decisões. O que os jogos fazem é aproveitar este mapeamento contínuo e introduzir-lhe variações que nos deixam ávidos por encontrar soluções. Encontrar soluções dá-nos prazer, e é por isso que continuamos a jogar.

[1] The Psychology of Tetris.

Read this next