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Journey - Análise

Divino.

Chamar jogo a Journey seria insultuoso para o trabalho levado a cabo pela thatgamecompany. Não que não o seja mas porque apenas seria uma descrição limitadora. Jenova Chen, o líder do estúdio, acredita que criou novamente uma inspiradora experiência interativa sobre as capacidades do ser humano, neste caso provavelmente na capacidade para se ultrapassar e de ascender a algo mais. Journey parece mais um exercício introspetivo sobre a forma como o ser humano se aventura perante o desconhecido, talvez mais sobre como tal não acontece tanto quanto noutras eras da humanidade, sobre o estímulo e desafio que daí resulta. Por outro lado estamos numa atualidade em que os videojogos ambicionam algo mais, algo com mais substância, mas um contraste parece evidenciar-se quando mais parece que estamos a viver numa era de "fast-gaming", quase um equivalente do que o fast-food representa para a alimentação.

E se pudéssemos parar, parar de correr ou parar para pensar e desfrutar do momento sem presunções e acreditar que este nosso passatempo pode ser a porta para algo mais do que a diversão direta e, frequentemente, banal que vamos tendo nos dias de hoje? E se no meio de tanto caos, no meio de tanto tiro ou soco desferido que nos faz sentir tanta emoção e serve como fuga tivéssemos tempo para desfrutar de uma experiência que nos faz parar e pensar em nós, em algo mais profundo do que o prazer imediato? Se tal conseguir o seu propósito poderemos então ter os videojogos a o serem mas a ascenderem a algo mais que diversão imediata, e talvez seja aí que reside a porta para o grande debate sobre se os videojogos podem tornar-se arte.

Agora podemos perguntar qual o propósito de uma jornada? Provavelmente encontrar algo que não estava acessível no momento da partida. Descobrir algo que nos faça ultrapassar limites do estado atual ou então descobrir significados que estavam fora do nosso alcance. Quase sempre o percurso tem tanto ou mais significado que o objetivo final e o que aprendemos pelo caminho é tão valioso quanto o final. Agora podemos perguntar qual o propósito de um videojogo? A resposta é bem mais simples e direta: entreter e divertir, algo que contrasta fortemente com o envolvimento espiritual e humano que uma jornada pode alcançar. E se fosse possível combinar os dois e pelo meio ainda insinuar-se como algo que poderia ser considerado como arte?

A ideia de evolução, de viagem ou até o brincar com a noção que somos apenas uma parte de um todo muito maior que a nossa imaginação pode conceber tem sido algo com o qual a thatgamecompany tem testado. Desde flOw em 2007 e até em flOwer em 2009. Ambos davam-nos um ponto de partida e permitiam que tivéssemos um papel direto no desenrolar de ações ligadas a algo maior. Agora em 2012 o estúdio parece ter apostado nos mesmos valores e brinca com a noção da procura por algo, da descoberta de significados, e de que todos temos uma jornada a cumprir e que apesar de todos os desafios pelo caminho, no final vamos sair como algo melhor.

Journey é então assim algo estranho, algo que não se parece como um jogo no seu sentido tradicional mas que na verdade o é. Não existem as atuais indicações que dizem ao jogador quais os processos que devem obedecer e quais as restrições a que está sujeito, aqui é como se pedissem ao jogador, define tu o que tens à tua frente. Nos primeiros momentos com Journey fiquei mesmo como que desamparado, sem saber o que pensar do jogo e sem saber o que era suposto eu pensar. É precisamente isso que a thatgamecompany pretende, que o jogador deixa a postura de "vou fazer isto e aquilo porque um tutorial disse para fazer" para que o jogador verdadeiramente descubra o jogo por si e aprenda as bases por si.

Journey não tem praticamente texto nenhum, não tem falas, e não tem quaisquer barras que digam ao jogador que vai ser penalizado se adotar determinado comportamento. Não, aqui temos uma jornada que começa apenas com três indicadores: o personagem que surge no meio de um deserto, um luz que brilha ao fundo da colina e uma enorme montanha bem lá no fundo e que claramente acreditámos ser o nosso destino. Mais uma vez a estrutura que o estúdio parece adorar é usada com belo efeito, a estrutura de um passo de cada vez, de uma ação leva à outra e de que cada ato é parte de uma sequência que se desenrola por ação do jogador.

Ao chegar à colina o jogador vê que a luz lhe concede a capacidade para saltar mas apenas o pode fazer uma vez, até que encontre novamente determinados objetos que lhe permitam saltar outra vez. Este é uma das mecânicas gameplay mais básicas de Journey e provavelmente aquela que mais o aproxima dos mecanismos tradicionais de um videojogo. Tal como a thatgamecompany nos habituou, primeiro chegamos à colina para obter a capacidade de saltar, em seguida já vemos uma construção lá ao fundo e temos que viajar pelo deserto até lá chegar e aí já vemos uma nova construção, com a enorme montanha sempre lá presente no horizonte.

"Para um estúdio que pretende focar-se mais nas sensações que quer transmitir ao jogador, deve ser um enorme prazer sentir que criou algo tão mágico quanto Journey."

Nesta nova construção descobrimos que podemos interagir com determinados elementos dos cenários, aqui uma espécie de altar que conta pedaços de uma história que só mais tarde irá fazer sentido. Daí vemos enormes ruínas no meio do deserto nas quais temos que libertar pequenos objetos, que parecem tapetes, que nos permitem saltar mais alto e recarregam a capacidade para saltar. Aqui também temos a oportunidade para alcançar determinados objetos que nos permitem saltar por mais tempo e ficam gravados no nosso "cachecol" que vai crescendo em acordo. Após alcançarmos o altar final, ficamos no que pode ser considerado o final do nível e seguimos jornada para um novo cenário.

Esta é a estrutura de Journey, vários locais pelos quais viajamos e cujos obstáculos temos que ultrapassar. Por razões óbvias não vamos aqui alargar muito sobre este elemento, é delicioso descobrir cada novo passo desta jornada e a momentos conseguimos ser bem mais do que surpreendidos. Journey pede ao jogador que embarque nesta viagem e vá ultrapassando os desafios físicos destes locais e que vá aprendendo aos poucos que não está aqui para alcançar melhor lugar nas tabelas de pontuações ou para obter determinado objeto, que está aqui para descobrir uma jornada e simplesmente isso.

Para um estúdio que pretende focar-se mais nas sensações que quer transmitir ao jogador, deve ser um enorme prazer sentir que criou algo tão mágico quanto Journey. Inspirador e até quase com uma certa inocência a nos desarmar de preconceitos. Também marcante na experiência é a forma como o personagem se move, repleto de graciosidade na maioria dos momentos mas em acordo com as dificuldades específicas de determinados locais. Journey consegue estabelecer uma bela ligação entre a fantasia e o credível. Em alguns momentos temos um personagem que voa pelos cenários e mais parece que estamos a viver algo envolto na magia dos filmes de menino mas noutros estamos a ser alvo das físicas a que toda a humanidade está. Desde os movimentos pela areia ao longo do deserto, à subida de degraus e do cálculo da distância para os saltos, existem mecânicas em Journey que temos que seguir mas que nesta experiência se sentem tão leves que se tornam naturais e quase sentimos que nem existem.

Journey partilha o seu destaque com o jogador e faz-nos sentir que mais do que estarmos a ser conduzidos ao longo de uma experiência interativa somos o principal e máximo interveniente. No entanto, a determinado momento podem notar uma figura similar à vossa a saltitar pelos cenários. É mais uma forma da thatgamecompany provar que nada de intrusivo existe aqui e que estamos nada mais, nada menos, do que perante o modo cooperativo. Ocasionalmente podemos entrar no jogo de outros, ou ser visitados, e novamente não podemos deixar de elogiar a forma como o estúdio brinca com as sensações que o desconhecido pode provocar, estranheza e até medo inicial que não deixa de provocar interesse e de aguçar alguma curiosidade.

Esta é a forma como o modo cooperativo surge em Journey, sem interrupções, sem pausas, sem quaisquer elementos que quebrem esta encantada jornada. Como referido, nada aqui é intrusivo, nada é forçado, o jogador vive a sua jornada. Isto reflete-se nesta componente quando temos a possibilidade de trabalhar em conjunto com o outro jogador ou simplesmente deixar que viva a sua experiência e seguir a nossa. Podem mesmo terminar a experiência toda em conjunto e podem também conhecer vários jogadores ao longo da vossa jornada, está tudo entregue a vocês.

Primeiros 15 minutos de Journey.

Um dos maiores apelos de Journey é sem quaisquer dúvidas o seu visual. Mais do que o jogo de cores, que dão imensa personalidade e distinção a cada um dos locais e cenários que se desenrolam à nossa frente, é a forma como o estúdio joga e embrulha em mistério cada novo metro do percurso. Para uma jornada que pretende refletir sobre o desbravar do desconhecido pela humanidade, é incrível a forma como o estúdio consegue rodear de mistério cada um destes locais nos quais cada novo desafio, cada nova sala, cada nova construção nos arrebata pela sua arquitetura e pelo seu design. O mundo aqui criado pela thatgamecompany é tão simples que espanta como consegue ser tão lindo e como nos consegue cativar tanto e nos fazer acreditar ter tanto significado.

Qualquer um que tenha jogado flOw ou flOwer sabe que a thatgamecompany investe seriamente na forma como a componente sonora entra em sintonia com todo o aparato visual. Aqui em Journey tal volta a ser usado e as misteriosas músicas estabelecem um ambiente fantástico que ajuda bastante na imersão do jogador. Simples e misteriosa quanto toda a jornada em si, a música de Journey convive com vários efeitos sonoros que nos fazem acreditar estar num mundo de fantasia próprio e seu. Um feito bem digno e merecedor de grande apreço.

Por muito que se queira fantasiar e divagar, seja de que forma for, Journey está inserido na categoria de videojogo e como tal alguns vão sentir a forçosa necessidade de o medir dentro de padrões da indústria. Nesta jornada mística e emblemática, a sua longevidade pode ser o elemento que menos vai agradar aos jogadores pois para chegarmos ao final é preciso pouco mais do que um par de horas. No entanto, tal nem sequer arranha o valor de Journey pois para além dos cativantes troféus que ficam por fazer, sem dúvida que o convite a repetir a jornada é mais do que irresistível.

Journey é realmente uma jornada espantosa do princípio ao fim. Extremamente linda e com significados que vão diferenciar dependendo da interpretação do jogador. É algo único e simplesmente irresistível, digno de ser jogado por todos com acesso à PSN. Se alguns insistem em aclamar que os videojogos são uma forma de arte, então a thatgamecompany mostra definitivamente um argumento de peso para quem defende tal. A sensação estranha que inicialmente fica enquanto somos desarmados pela sua simplicidade rapidamente se torna em algo prazeroso que se entranha e ficamos apaixonados por algo belo e mágico.

10 / 10

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Journey

PS4, PS3, PC

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Bruno Galvão

Redator

O Bruno tem um gosto requintado. Para ele os videojogos são mais que um entretenimento e gosta de discutir sobre formas e arte. Para além disso consome tudo que seja Japonês, principalmente JRPG. Nós só agradecemos.

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