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Progressão e celebração

Os níveis como essência do envolvimento do jogador.

A ideia para este texto advém do livro que ando a ler de Oliver Sacks, "The Mind's Eye" (2010). No segundo capítulo Sacks descreve o episódio clínico da recuperação da paciente Patricia H. depois desta ter sofrido um grave derrame cerebral que a deixou paralisada do lado direito e afásica. Este acidente vascular aconteceu numa fase depressiva em que entrou após a morte do marido. Uma pessoa que já não tinha qualquer vontade de viver, fica paralisada de um lado, e sem capacidade para falar ou compreender a linguagem verbal, ou seja incapaz manter laços sociais. Ora o que vai acontecer com Patricia H. é que esta, com o passar do tempo vai transferir a sua expressividade do meio verbal para o meio não-verbal, ou corporal.

Aos poucos, evolui a sua sociabilidade, tornando-se extremamente competente a ler a expressão não verbal dos outros, e a comunicar usando o seu corpo em conjunto com um livro de imagens e texto. Ganha o carinho e atenção social de quem vive com ela na clínica, outros pacientes e funcionários, consegue até "falar" com filhos e netos por telefone, via sins e nãos, na forma de beijos ou sons bruscos. Quando ao fim de alguns anos Sacks lhe pede para escolher do livro a palavra que melhor define como ela se sente face à vida que leva, é com surpresa para ele e para as filhas da senhora, que a palavra escolhida é "Feliz"

.

Enquanto lia este capítulo, que está aqui muito resumido faltando muito do detalhe da evolução da doença, não conseguia parar de pensar nas palavras: motivação e progressão. Ou seja, no modo como alguém a quem é retirada uma faculdade essencial, a comunicação, consegue ter forças para já com uma certa idade voltar a partir quase do zero para atingir de novo um nível quase óptimo de comunicação. Em face desta desconstrução conceptual, não conseguia deixar de pensar também na metáfora de "Switch" [1], dos irmãos Heath sobre os processos de mudança difíceis.

O que eles nos dizem, é que o nosso cérebro funciona dividido em duas partes, a racional e a emocional, e a sua metáfora compara o racional com um condutor de elefantes, e o emocional com um elefante. Ou seja o racional, não consegue vencer o emocional pela força, tem de saber levá-lo. Nesse sentido os irmãos Heath dizem que para acontecer a mudança, precisamos de convencer o "elefante" a começar a mexer. Assim o essencial para motivar, passa por realizar a mudança dando pequenos passinhos, se pedirmos demasiado de uma vez só, o mais certo é que o "elefante" não se mexa. Para além disso, precisamos de transformar o caminho no sentido da mudança, que passa essencialmente por celebrar cada passinho dado, de preferência socialmente.

Então e o que é que isto tem que ver com os videojogos? Tudo. Começando por Asleep Walking (2011) [2], um pequeno jogo indie em que cada nível se resume a um simples ecrã que demora cerca de 30s a 1 minuto a passar, e em que no final de cada nível aparece a mensagem "Level xx Complete", com mais uma bolinha conquistada, isto ao longo de 26 capítulos. Ou seja, podemos perceber que para levar o jogador a completar um pequeno jogo de 15 minutos, o designer decidiu dividir todo o jogo em muito pequenas partes, cerca de 2 níveis por minuto, e ao mesmo tempo celebrar cada final de nível como uma conquista realizada. Ou seja, em redor de níveis que são mais ou menos semelhantes em termos de puzzle-plataforma, foi construída toda uma estrutura lógica de progressão, que se faz sentir na conquista de muito pequenas vitórias, que por sua vez são fortemente enfatizadas.

"Os videojogos são objetos essencialmente desenhados de modo a contribuir para a felicidade das pessoas."

Voltando à paciente Patricia H., para além de muitas outras variáveis que terão contribuído para toda a sua evolução na recuperação da doença, acredito que o facto de ela ter passado por um processo de muitos pequenos passos de reconquista da capacidade de comunicar, e de isto ter sido continuamente celebrado pelo grupo social que a rodeava, será a principal chave explicativa da mudança operada no seu comportamento, que passou de um estado de total depressão para um estado de felicidade.

Ou seja, com isto estou a dizer várias coisas. A primeira é que a sensação de progressão, é condição essencial para manter o jogador engajado. E que essa sensação é tanto mais evidente quando os objectivos vão sendo conseguidos com pouco esforço, de tempo ou de investimento cognitivo, simultaneamente com a celebração dos objetivos atingidos. E isto sempre foi assim nos jogos daí que se tenham criado, os Níveis, mas claramente que se tem acentuado a facilidade e a quantidade de conquistas na indústria, como falei aqui em Recompensa e Dificuldade [3]. Também não é por mero acaso que os jogos estão cheios de itens para serem recolhidos à medida que vamos jogando. Cada item recolhido, aumenta os item encontrados, ou seja a progressão para a plenitude, e isso é sempre devidamente celebrado em ecrã próprio ou com música e imagem a condizer.

Também não é por acaso que temos visto os ecrãs de seleção de níveis, principalmente dos pequenos jogos, (Ex. Angry Birds (2009); Cut the Rope (2010) ou Super Meat Boy (2010), entre muitos outros) surgirem cada vez mais num modo de "janelas" abertas/fechadas com estrelas, e ainda distribuídas por vários ecrãs, cada um com 10 a 20 janelas. As janelas abertas celebram a conquista de cada nível, as estrelas enfatizam a conquista, a divisão em vários ecrãs possibilita o acentuar da progressão, porque vemos apenas as poucas que faltam realizar naquele ecrã, e não todas as que faltam no jogo. Isto ajuda a criar um sentimento de que o fim está mais perto, apesar de sabermos que existem mais ecrãs de níveis, aquele ecrã de níveis passa a ser um objectivo intermédio de progressão no jogo. Aliás nesse sentido da total progressão, não podemos saltar da janela 4 para a janela 10, sem ter jogado todas as intermédias, assim como nos estão vedados os ecrãs, de níveis, seguintes enquanto não acabamos o que estamos a jogar.

A segunda evidência desta análise, é que os videojogos são objetos essencialmente desenhados de modo a contribuir para a felicidade das pessoas, para o aumento da autoestima. Resta-nos saber dirigir do melhor modo possível esta sua capacidade.

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Sobre o Autor
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Nelson Zagalo

Contributor

Nelson Zagalo é professor de media interativa na Universidade do Minho e fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.

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