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De pedintes a milionários

O início do fim do Kickstarter?

Incrível como a maior notícia de videojogos do ano até agora tem muito pouco que ver com videojogos, uh? Quase toda a gente foi apanhada de surpresa a semana passada quando, do nada, o Facebook sacou do seu grande e gordo livro de cheques e comprou a Oculus VR por 2 mil milhões de dólares. Muito poucos acharam a surpresa agradável.

Desde que foi apresentado em 2012 que o Oculus Rift se tornou a grande bandeira do que pode vir a ser o futuro dos videojogos: a realidade virtual. O sonho é antigo e um pequena empresa californiana, carregada de talento mas sem dinheiro, decidiu usar uma plataforma de crowdfunding para o concretizar. A empresa pedia $250.000 para avançar com o projecto mas o público gostou tanto da ideia que acabou por contribuir com $2.437.429, dando à Oculus VR possibilidade de tornar real o seu projecto.

Conseguir um financiamento quase 10 vezes acima do esperado demonstra bem o interesse dos jogadores na realidade virtual.

Mais uma vez, o Kickstarter afirmava-se como uma forma de financiamento totalmente alheia às velhas regras da indústria. Os jogadores adquiriam um produto mesmo antes de ele sair e tornavam reais projectos aos quais as cautelosas editoras não davam luz verde.

O estado actual do Kickstarter

O Kickstarter tornou-se no El Dorado de vários designers talentosos que encontraram aqui a grande oportunidade de realizar alguns dos seus projectos de sonho que, muito dificilmente, as editoras a que estão ligados não apostariam por acharem que não existe mercado para esses títulos. Graças ao Kickstarter, esse mercado cria-se a si próprio uma vez que cada consumidor contribui directa e antecipadamente para que o jogo passe do papel para a realidade(por norma, até as contribuições mais baixas dão direito a uma cópia do jogo assim que ele esteja pronto).

Se olharmos para alguns dos projectos mais famosos que vêm aí, notamos um certo padrão:

  • Wasteland 2(sequela do predecessor espiritual da série Fallout);
  • Unsung Story(sequela espiritual de Final Fantasy Tactics);
  • Star Citizen(do criador de Wing Commander);
  • Godus(de Peter Molyneux, na onda de Populous e Black & White);
  • Remake HD de Leisure Suit Larry in the Land of the Lounge Lizards;

Quase todos são sequelas espirituais ou remakes de jogos populares nos anos 80 e 90 mas que, talvez injustamente, foram esquecidos pelas grandes editoras. Apesar do sucesso de XCOM: Enemy Unknown, poucas editoras estão dispostas a ressuscitar IPs tão antigas. A única opção que os seus criadores têm é mesmo a de falar directamente com os fãs mais devotos e perguntar-lhes se desejam continuar as suas séries favoritas de há 15-20 anos atrás.

Wasteland 2 é um dos mais aguardados pelo Kickstarter. Dificilmente uma editora aprovaria uma sequela de um jogo de computador de 1988.

Um dos casos mais famosos de crowdfunding bem sucedido é Broken Age, do Tim Schafer. No entanto, 2 anos depois de ter sido apresentado, ainda como Double Fine's Adventure, apenas o primeiro acto de Broken Age foi lançado, para desânimo dos fãs. Infelizmente, isto não é de estranhar: dos 366 jogos financiados através do Kickstarter entre 2009 e 2012, apenas 1 em cada 3 foram lançados dentro do prazo proposto.

"Apesar dos muitos contratempos associados ao Kickstarter, existem vários casos de sucesso que provam que a plataforma é um modelo de negócio viável"

Em muitos dos casos(não os que foram mencionados), o adiamento e cancelamento dos jogos deve-se à pouca ou nenhuma experiência na indústria dos envolvidos no projecto. Apesar de ouvirmos falar de um ou outro talento de estúdios famosos que se junta para realizar um projecto conjunto, não raras vezes temos pequenos produtores indie que, como é natural da sua inexperiência, menosprezam o custo da sua ambição. Noutros casos, a clara falta de pressão de uma editora acaba por relaxar o ritmo do projecto, levando a sucessivos adiamentos. Por fim, temos também projectos que, por terem conseguido um financiamento superior ao esperado, aproveitam esse dinheiro extra para "melhorar" o conceito inicial. Broken Age é um desses casos, assim como The Banner Saga, que acabou por contratar uma orquestra para a banda sonora graças a um contributo acima do objectivo inicial.

Apesar dos muitos contratempos associados ao Kickstarter, existem vários casos de sucesso que provam que a plataforma é um modelo de negócio viável tais como FTL, um dos jogos mais aclamados dos últimos anos. Também a série Banner Saga, produzida por ex-funcionários da Bioware, tem sido muito bem recebida tanto pela crítica como pelos jogadores.

Broken Sword 5: The Serpent's Curse é outro dos títulos que só seriam possíveis nos dias de hoje graças ao crowdfunding. Apesar do sucesso dos mais recentes títulos da Telltale, as aventuras gráficas ainda são um género de nicho no qual poucas editoras estão dispostas a apostar.

Por fim, não nos podemos esquecer que sem o Kickstarter a consola Ouya nunca teria visto a luz do dia. A consola acabou por ser um falhanço comercial, muito por culpa da inexperiência dos envolvidos, mas abriu as portas a dispositivos Android como o recentemente apresentado Kindle Fire que, com a experiência da Amazon, certamente será bem sucedido.

O problema é que a semana passada o Kickstarter pode ter sido vítima do seu próprio sucesso.

O caso Oculus Rift

Nenhum outro projecto de crowdfunding se compara ao sucesso obtido pelo Oculus Rift. Defender que um sistema pode ruir uma semana depois de ter atingido o topo pode parecer um pouco exagerado, até mesmo contraditório, mas a realidade é que a compra da Oculus VR pelo Facebook levantou sérios problemas de confiança que se podem reflectir no futuro do crowdfunding.

"A realidade é que um punhado de pessoas ficaram multi-milionárias da noite para o dia graças a um projecto que nunca teria arrancado se não fosse a boa vontade de uma comunidade de jogadores que acreditou no Oculus Rift."

Dizer que quem apoiou o Oculus Rift se sente traído é um eufemismo. Na última semana, vários dos apoiantes iniciais do projecto pediram para serem reembolsados na medida do seu contributo; outros pediram apenas para lhes devolverem o dinheiro que colocaram no projecto através do Kickstarter.

A realidade é que um punhado de pessoas ficaram multi-milionárias da noite para o dia graças a um projecto que nunca teria arrancado se não fosse a boa vontade de uma comunidade de jogadores que acreditou no Oculus Rift. Infelizmente, os termos do Kickstarter(e de outros sistemas de crowdfunding) não salvaguardam os interesses dos backers enquanto investidores. Trata-se apenas de uma doação, não de um investimento, e, sendo assim, os jogadores apenas têm direito ao que lhes foi oferecido na medida do seu apoio quando o realizaram. Legalmente, a Oculus VR não deve nada a quem acreditou neles; moralmente, deviam, no mínimo, devolver o valor que cada um dos backers lhes deu e ficar gratos por aquela quantia ter acabado com quaisquer preocupações financeiras que possam ter para o resto da vida.

Dinheiro à parte, outros jogadores sentem-se igualmente traídos por verem o Oculus Rift ser comprado por uma rede social. Será que uma aquisição por parte da Microsoft ou da Valve teria chateado tanta gente? É provável que não. É que apesar do Facebook ter vários jogos, a rede social vive da venda de publicidade e informação pessoal a marcas. Duvido seriamente que algum dos backers do Oculus Rift sonhasse em jogar Farm Ville ou Candy Crush Saga com o headset.

O pai de Doom acredita nas boas intenções do Facebook. Eu continuo céptico.

Trata-se de uma mudança de filosofia à qual os termos do Kickstarter estão completamente alheios e que não transmite qualquer segurança a quem apoia um projecto através do crowdfunding.

O cancelamento de Minecraft para o Oculus Rift foi uma repercussão imediata desta compra e a quantidade de cépticos em relação ao futuro do headset não pára de aumentar. A realidade é uma: daqui para a frente, o financiamento de projectos através do Kickstarter promete ser mais difícil. Por um lado, as expectativas dos backers não ficam asseguradas; por outro, custa ver donativos para um projecto transformados em milhões para alguns.

Se o Kickstarter não mudar a sua política, arrisca-se a ser engolido por plataformas similares mas que operam através de um fundo de equidade (em que cada pessoa é um investidor na medida daquilo que contribuiu).

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Sobre o Autor
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Joel Monteiro

Contributor

Amante de design de videojogos nos poucos tempos livres. Escreve quinzenalmente na Eurogamer Portugal sobre a indústria e criatividade.

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