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Cognição e capitalismo

Free-to-play e Gamification.

Paolo Pedercini fez uma comunicação na Indiecade East 2014 denominada "Videogames and the Spirit of Capitalism" [1]. Antes de entrar no detalhe, apenas dizer que não sendo nenhum defensor acérrimo do capitalismo, também não tenho muita paciência para os discursos que procuram culpar este de todos os males da sociedade. Dito isto, quero começar por dizer que gostei da comunicação, apesar de estar em desacordo com grande parte do que é dito, passo a explicar porquê.

Pedernici começa por apresentar ao que vem, defender uma nova teorização, de que os videojogos serão a realização estética de um modelo de socialização que opera a eficiência e optimização por meio da racionalização, ou seja que embebe o espírito capitalista. Diz ele, os "jogos de computador são a forma estética de racionalização ... Na sociologia, a racionalização refere-se a um processo de substituição de tradições, costumes e emoções como motivadores da conduta humana em favor da quantificação e de cálculo". E é com isto que eu não concordo.

Pedernici estabelece analogias e ligações sem nexo ao querer impingir a ideia de que a "resolução de problemas" ou a "procura de padrões", referindo que a maior parte dos verbos dos jogos seguem a mesma lógica, "resolver, limpar, gerir, elevar, colecionar, estimar", são tudo operadores de racionalização. Que aquilo que fazemos num videojogo, quando resolvemos um puzzle, ou repetimos ações para conseguir ultrapassar um obstáculo, são formas de racionalizar, ou seja quantificar e calcular, e que isto é um erro porque é uma forma desumanizante de lidar com a realidade.

Antes de explicar porque está errado Pedernici, quero apenas dizer que concordo inteiramente com ele, quando ele aplica este discurso aos jogos da Zynga e companhia, ou quando o aplica aos processos de gamificação. Porque aí sim, o que está a acontecer são processos de optimização do jogo com o intuito de o tornar mais viciante, ser capaz de produzir alterações de comportamento temporárias, para se poder atingir os fins a que se propõem. Ou seja, o videojogo torna-se secundário, porque este deixou de ser o fim e passou a ser o meio para que as empresas atinjam os seus fins.

Mas isto é muito diferente de quando falamos de um jogo como Tetris ou Super Mario. É verdade que se operam aí todas as chamadas lógicas de racionalização - a resolução de problemas, a procura de padrões, a optimização - mas estas não são operadas com nenhum fim extrínseco ao prazer que conferem por si. Estamos a falar essencialmente de lógicas de cognição que os seres humanos desenvolveram ao longo de milhares de anos, no sentido de garantir a sobrevivência.

Aquilo que os jogos fazem é exatamente operar sobre estas lógicas profundamente humanas, para as treinar, e é por meio desse exercício que os jogadores retiram prazer do jogo. Conhecer coisas novas, resolver problemas, resolver puzzles garantem-nos o exercitar da mente e o nosso corpo sabendo da importância desse exercício apoia-nos bombardeando o nosso cérebro com dopamina, o neurotransmissor do prazer, para que continuemos a jogar.

"No fundo quando falamos de gamification ou de free-to-play, deixamos de falar de jogos, e passamos a falar de outra coisa distinta."

Os problemas acontecem nos jogos free-to-play e na gamification porque retiram as práticas de jogo de contexto, e colocam-nos sob a guilhotina dos fins extrínsecos às ações do jogo. O jogo deixa de acontecer num círculo mágico, de faz-de-conta, sem ligação à realidade, e passa a implicar investimento financeiro e/ou social. No fundo quando falamos de gamification ou de free-to-play, deixamos de falar de jogos, e passamos a falar de outra coisa distinta. Em inglês temos um termo que define bem este modelo, o "gamble" que difere do "game", e que se refere ao jogo de azar ou de casino. Ou seja, as ações do jogador implicam ganhos ou perdas reais e efetivas ao contrário do jogo tradicional, veja-se o caso recente de "Dungeon Keeper" da EA [2].

É assim que Pedernici acaba confundindo dois modelos de jogo bastante distintos, atacando a simples jogabilidade, acusando-a de impedir o aparecimento de outras formas de jogo, nomeadamente narrativas. Se concordo com a necessidade de encontrarmos novos modelos de design, discordo totalmente da ideia simplista dos modelos de design dos jogos atuais serem alienadores do pensamento humano, por trabalharem a optimização e quantificação. Os tais verbos quantificadores, não são mais do que os motivadores de ação, e são-no porque a nossa cognição assim os define. Não podemos confundir discursos, o jogo precisa de motivar a ação no jogador para que ele aja sobre o jogo, já a narrativa não necessita da ação do jogador, apenas da reflexão e contemplação. Ainda esta semana falei a propósito disto no caso do design de "Bioshock Infinite" [3].

  • [1] Videogames and the Spirit of Capitalism, in MolleIndustria http://www.molleindustria.org/blog/videogames-and-the-spirit-of-capitalism/
  • [2] Dungeon Keeper review, in Eurogamer, https://www.eurogamer.net/articles/2014-02-05-dungeon-keeper-review
  • [3] Narrativa e Motivação, "Bioshock Infinite" (Parte II), in Virtual Illusion, http://virtual-illusion.blogspot.pt/2014/03/narrativa-e-motivacao-bioshock-infinite.html

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Sobre o Autor
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Nelson Zagalo

Contributor

Nelson Zagalo é professor de media interativa na Universidade do Minho e fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.

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