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O “jornalismo” sobre os videojogos

Preconceito e ignorância.

Esta semana gerou-se grande discussão na rede portuguesa a propósito de uma "reportagem" do canal nacional, TVI, sobre a feira de videojogos E3 [1]. A insatisfação com o modo como a cultura dos jogos foi tratada nessa peça "jornalística" levou mesmo à criação de uma petição que exige um pedido de desculpas formal por parte da cadeia televisiva [2]. Vi a "reportagem" e surpreendeu-me mais pela deturpação dos princípios básicos do jornalismo, do que a falta de conhecimento do meio, os simples: "O quê?", "Quem?", "Quando?", "Onde?", "Como?", e "Porquê?". A peça pretendia abordar a feira de jogos, na qual foram anunciadas as duas grandes consolas internacionais. A última vez que isto aconteceu numa E3, foi há sete anos, o que dá bem conta da importância do evento. Mas a peça acabou a falar de alegados problemas emocionais provocados pelos jogos. Ou seja, a "jornalista" não tratou o assunto em questão, quis antes emitir uma opinião sobre o objecto de fundo da feira. Por isso tenho de usar aspas quando me refiro à peça, como "reportagem" ou "jornalismo".

Este não é um problema da TVI apenas, nem sequer é um problema apenas nacional. Há umas semanas partilharam na rede o artigo, "Onde os lunáticos prosperam" [3] de Jeanine Connor que me deixou bastante mais perturbado do que esta peça. O artigo vai bastante mais longe do que aquilo que foi feito aqui, ainda que focando-se exactamente sobre o mesmo tema. Além disso, não é um mero texto solto, nem uma reportagem que passa a uma qualquer hora de baixas audiências. O texto foi escrito por uma psicoterapeuta, e publicado na revista Therapy Today, editada pela Associação Britânica de Aconselhamento e Psicoterapia. Uma revista dedicada a divulgar aconselhamento e recursos para uso por profissionais no campo da terapia prática. Ou seja, assume-se que antes de ser publicado, foi lido por pares, filtrado por editores, e visto como bastante fidedigno, a ponto de se tornar no artigo principal, e tema de capa completa, no número desse mês.

Foi devido aos videojogos que Anders Behring cometeu o ataque em Oslo?

E então o que nos diz a Associação Britânica de Aconselhamento e Psicoterapia, segundo as palavras de Jeanine Connor? O artigo começa por apresentar o caso de uma criança de 11 anos que tem um comportamento terrível na escola, bate nos colegas, trata mal os professores, tem más notas e já foi várias vezes suspenso. Depois explica-nos que esta criança nasceu de uma gravidez não desejada, de pais bastante novos, que foram viver juntos para uma casa social. O pai batia na mãe, bebia álcool e tomava drogas. Passados poucos anos o pai embriagado quase que matava toda a família atirando o carro para debaixo de um camião, e por isso foi preso. A mãe sozinha, junta-se a um amigo, que a tinha entretanto violado. O amigo que também batia na mãe, engravida-a de um segundo filho. Este amigo fugiu, e a mãe arranjou um terceiro, que também lhe bate, e lhe fez um terceiro filho. A criança com 11 anos, não gosta da mãe, e diz-lhe que quer morrer. Passa a maior parte do seu tempo fechado no quarto a jogar videojogos ("GTA" e "CoD").

"...colocar imagens de Anders Breivik numa reportagem sobre a E3 é de um nível de distorção insólito..."

Agora a análise e interpretação do caso realizada pela psicoterapeuta. A criança vive num mundo real e virtual carregado de violência. A criança não tem afecto dos pais e é educada pelo ecrã. O ecrã serve de espelho para a sua externalização, fundindo o real e a fantasia. Na ausência de um pai, a formação de identidade dos rapazes adolescentes é enredada com os personagens dos jogos. Estes adolescentes são educados por jogos com personagens agressivas, por imagens de mulheres provocantes que fazem "simulações de sexo oral". O texto termina dizendo que a continuação destas tendências nos media, levará os rapazes no futuro a sentirem-se mais atraídos pela violação, pedofilia e abuso doméstico, e que "este futuro temido será então o verdadeiro lugar em que os lunáticos prosperarão." Para suportar este texto, foi criada uma imagem para a capa da revista, em que se vê uma cena de violência doméstica a ser controlada por um gamepad.

Acabado de ler, nem queria acreditar. É verdade que colocar imagens de Anders Breivik numa reportagem sobre a E3 é de um nível de distorção insólito, mas pretender solucionar os problemas de lares violentos e desestruturados com a retirada dos videojogos e da violência dos ecrãs, devia dar para rir, se não fosse publicado com esta seriedade. Sei bem que é muito mais difícil, se não impossível, a um psicoterapeuta alterar a realidade social que rodeia a criança. Dar-lhe um novo lar, novos pais, uma segunda vida. Mas daí a simplificar e a sintetizar todos os problemas que assolam a vida desta criança nos jogos, e a propor como solução para o que relatou, o simplista banimento destes artefactos, é uma afronta.

Mas o que me magoou mais ao ler o texto, foi o momento em que a terapeuta questiona a criança a sós, sobre os jogos que mais gostava de jogar, e surpreendida diz, que foi a primeira vez durante toda a avaliação, em que a criança se mostrou animada e desperta. Pudera, uma criança que vive num lar de violência física, sexual e stress diário, em que tudo é incerto e nada é seguro, a única coisa que lhe garante alguma estabilidade cognitiva e emocional são exatamente os videojogos. Os videojogos são em certa medida os únicos que o compreendem, que lhe dão feedback positivo pelas ações e conquistas que realiza, quando à sua volta todos apenas o encaram como um empecilho.

Isto ultrapassa a ignorância e o preconceito. Isto é um sintoma do liberalismo que se apossou do pulsar da sociedade, ou do que resta dela. São precisos culpados, e esses não podemos ser nós, nem as governações que estimulam sociedades altamente individualistas. Porque não interessa a promoção de políticas sociais com capacidade para manter a sociedade coesa, saudável e educada. No meio de tudo isto, o jornalismo em vez de investigar, limita-se a debitar o discurso vigente.

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Sobre o Autor
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Nelson Zagalo

Contributor

Nelson Zagalo é professor de media interativa na Universidade do Minho e fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.

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