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A Mulher nos Videojogos

Um problema de educação da sociedade.

A semana passada foi recheada de eventos relacionados com a mulher no mundo dos videojogos. Primeiro foi o lançamento do primeiro episódio da série "The Tropes vs Women in Video Games" [1], a 7 de Março. Depois foi a comemoração do dia da mulher a 8 de Março. E para fechar a 9 de Março, o designer de jogos Mike Mika, publica o vídeo do jogo "Donkey Kong: Pauline Edition" [2], uma nova versão de Donkey Kong, em que em vez de jogarmos como Mario, jogamos como Pauline. Considero esta sucessão de eventos importante, porque é necessário ganharmos consciência da representação da realidade que criamos e jogamos todos os dias. Uma grande parte do nosso tempo, não paramos para pensar nestas questões, porque no meio de toda a cultura circundante que emite a mesma ideia, acabamos por ser formatados e aceitar tudo como a normalidade. Por isso é necessário discutir, comemorar, fazer documentários e escrever sobre o tema.

O documentário criado por Anita Sarkeesian foi financiado por crowdsourcing através do Kickstarter. E todos devem estar lembrados da forma brutal como ela foi enxovalhada e perseguida quando inicialmente apresentou o seu projecto (recomendo vivamente que vejam a sua TEDxWomen [3]). Uma parte da comunidade gamer reagiu violentamente e negativamente à intenção de se fazer o documentário, "The Tropes vs Women in Video Games", que agora pudemos ver. Posso dizer que para muitos de nós, foi uma surpresa esta reação da comunidade. Mas só demonstrou que as pessoas continuam a reagir por instinto, e que além disso a sociedade tem sido incapaz de educar suficientemente as pessoas para que elas compreendam o mundo em que vivem, para que elas possam avaliar a realidade não em função das suas percepções instintivas, mas em função dos valores humanos e da igualdade social. É verdade que a ficção falha, a literatura, o cinema e os videojogos, mas as escolas, as associações, e os pais também falham. Este não é um problema apenas dos videojogos, nem de quem os desenvolve, este é um problema maior da nossa sociedade.

Pauline salva o Mario das garras de Donkey Kong

Apesar de tudo acredito que a cultura que todos produzimos pode dar uma ajuda neste campo. Desde há milhares de anos que o processo de contar histórias se apresenta enviesado em temos de género. O homem é apresentado como o protagonista, aquele que tem o poder de agir e transformar a realidade, enquanto a mulher se remete à condição inativa de testemunha indefesa e dependente do homem para se salvar. Se este formato de contar histórias não é novo, a verdade é que também não é nova esta discussão sobre o papel das mulheres no storytelling. Os estudos fílmicos atravessaram toda uma época nos anos 1970 em que discutiram fortemente o assunto. Julgo que o que esta discussão sobre os videojogos tem hoje de diferente, sobre aquela que se realizou sobre o cinema, é que é muito mais direta e convincente. Isto porque essencialmente se preocupa com a forma e estrutura narrativa, e não com o teor daquilo que é dito pela história. Ou seja, esta forma de análise é muito mais objectiva, direta e até demonstrável em termos quantitativos.

"No passado fizeram-se muitas teorizações da psicanálise para explicar porque é que o papel da mulher era rebaixado no cinema."

No passado fizeram-se muitas teorizações da psicanálise para explicar porque é que o papel da mulher era rebaixado no cinema. Procurou-se acima de tudo explicar as causas que fundamentavam o aparecimento das histórias, sem existir uma preocupação em compreender a arte como um todo. Com isto construíram-se muitas teorizações pouco relevantes, que acabaram mesmo por descredibilizar uma parte dos estudos feministas no cinema. Porque na realidade a causa para esta distorção operada no storytelling, é algo muito simples e mesmo muito básico. O storytelling tem-se limitado a refletir concepções da sociedade amplamente aceites por esta. Ora a sociedade passou milhares de anos a rebaixar a condição da mulher. É algo que nos acompanha desde a origem da espécie, se o homem era mais forte fisicamente, era ele o responsável por defender o território e defender os menos fortes, as crianças e as mulheres. Se um grupo opositor aparecia quando ele estava fora em busca de comida, e levava as mulheres, logo se iniciava uma busca por parte do homem para conseguir salvar a mulher. Isto é o mais básico que pode existir, e está connosco desde sempre.

Mas isto não termina aqui, não é apenas a condição da força física, existe algo mais, e esse algo mais está patente na diferença fisiológica entre homem e mulher, que permite criar uma cisão entre dois grupos, e é aqui que começam os maiores problemas. Enquanto espécie lidamos muito mal com a diferença, "tudo para os que são como nós, nada para os que são diferentes de nós" [4]. E as diferenças surgem e acentuam-se numa sociedade quando esta é incapaz de lidar com elas, e incapaz de educar para a aceitação da diferença. Foi assim desde o início, e a mulher e o homem terão iniciado esse muro de diferenças, mas não se ficou por aí, com a evolução da espécie fomos encontrando muitas outras diferenças, tais como a cor da pele, como a religião professada, a posição social, a nacionalidade, etc. Mas é verdade que em 2013 grande parte destas diferenças foram já banidas, ou pelo menos disfarçadas na nossa produção cultural de massas - cinema, literatura e jogos. Não quer isto dizer que as lutas emergentes destas diferenças se tenham extinguido, mas pelo menos fomos capazes de nos educar ao ponto de não permitir este tipo de discursos proferidos abertamente.

No entanto relativamente à condição da mulher, pouco fizemos, continuamos a colocá-la na mesma posição subalterna e submissa que colocávamos há milhares de anos, de cada vez que queremos contar uma história com fortes emoções. Na verdade se olharmos para muitas outras coisas que nos rodeiam rapidamente iremos perceber porquê, é que esta diferença, este grupo em concreto, tem sido constantemente o último na cauda das preocupações da nossa sociedade. Repare-se por exemplo que em termos de sufrágio, votação para eleições, as mulheres só começaram a ser consideradas em exata igualdade com os homens de uma forma mais geral, a partir da primeira guerra mundial. Mas por exemplo em França tiveram de esperar até 1944. Na Suíça tiveram de esperar até 1971, e em Portugal só em 1974 passaram a deter exatamente o mesmo estatuto. Mas se quisermos ir mais longe, e já que estamos em tempos de novo Papa, o que dizer do Vaticano que a par da Arábia Saudita, são os únicos países que nunca permitiram a votação por parte de mulheres, e naturalmente o acesso ao poder está-lhes negado?

Não é uma questão de ser ou não ser feminista. A grande questão é que se não falarmos sobre o assunto, se não o discutirmos suficientemente, dificilmente conseguiremos sair deste modelo, porque ele é constantemente reforçado, filme após filme, jogo após jogo, ação após ação. Ou seja, o meu interesse não é dizer que isto é errado, ou mau, é antes dizer que existem alternativas. Dizer que fazer um jogo em que a Pauline salva o Mario das garras de Donkey Kong, não tem de ser uma frustração, e pode ser até mais interessante porque nos pode ajudar a ver o mundo de formas distintas daquelas a que nos habituámos [2]. Tarantino fez muito bem a inversão de raças em Django Unchained (2012) colocando um negro como anti-herói, só foi pena que não tivesse sido capaz de compreender que apesar disso manteve uma vez mais a mulher no lugar de indefesa, e como objectivo final de conquista pelo homem.

[1] Damsel in Distress (Part 1) Tropes vs Women

[2] Why I Hacked Donkey Kong for My Daughter

[3] Anita Sarkeesian at TEDxWomen 2012

[4] O Lado Negro da Moral

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Sobre o Autor
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Nelson Zagalo

Contributor

Nelson Zagalo é professor de media interativa na Universidade do Minho e fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.

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